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10/06/2004 - 08h12

Adultos não assumem relação por medo de responsabilidades

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IARA BIDERMAN
free-lance para a Folha

Uma pergunta tão simples virou, para muitos, um enigma difícil de ser decifrado. O básico "e aí, está namorando?", que só comportava duas alternativas --"sim" ou "não"--, pede agora um genérico "nenhuma das anteriores", entrando para a categoria das situações indefinidas. Há uma numerosa população para a qual a dúvida no próximo sábado, Dia dos Namorados, não é o que vai dar ou receber de presente, mas que nome dar ao relacionamento afetivo atual. Um shopping center de São Paulo percebeu a tendência e, provavelmente com o intuito de ampliar seu público-alvo, trocou o nome da efeméride por "dia do fico" nos cartazes espalhados pelo metrô paulistano.

Parece coisa de adolescente, mas o ficar com alguém e suas variantes "se conhecer e se curtir" estendem-se tranqüilamente até os 25, 30 anos de idade. É a fase da adolescência que foi prolongada, segundo o psicanalista Armando Colognese Jr, do Instituto Sedes Sapientae, de São Paulo. Passam-se os anos, mas permanecem a imaturidade e o receio de assumir as responsabilidades da vida adulta, entre as quais as que envolvem um relacionamento afetivo estável.

Mas a dificuldade de assumir compromisso não ocorre devido a obrigações reais como casar e ter filhos, que pertencem a um estágio posterior ao namoro. Os obstáculos são certas idéias em vigência no mundo moderno, diz o psicanalista Robson de Freitas Pereira, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Uma delas, que não é recente mas continua poderosa, é a do amor idealizado, em que a paixão não tem limites e nunca acaba. Já o outro conceito que vigora é o ideal de conquistar uma autonomia absoluta. "As pessoas acham que não podem ser dependentes nunca, principalmente afetivamente. Assim, fica difícil namorar, se entregar, ser tolerante", diz Pereira.

E garantir autonomia hoje significa também ter uma disponibilidade irrestrita para disputar o sucesso no mercado de trabalho, diz Mauro Koury, coordenador do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção, da Universidade Federal da Paraíba. Uma maior dedicação à vida privada, exigida por um relacionamento, é incompatível com as exigências da vida pública, do mundo do trabalho. Dessa maneira, o comprometimento amoroso deixa de ser prioridade para homens e mulheres igualmente.

Os espaços públicos de metrópoles como São Paulo também não ajudam em nada na construção de relacionamentos mais consistentes. "O excesso de ofertas coloca qualquer um em estado de expectativa permanente: a melhor situação pode estar no momento seguinte", diz Agnaldo Farias, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Ninguém quer se fixar para estar disponível para a melhor oferta: o próximo bar, a próxima festa, o próximo parceiro.

E, nesse caso, não é nem preciso se fixar em algum lugar, já que pessoa pode ser encontrada onde estiver. Pelo celular, todos encontram todos. "Vivemos em um estado de nomadismo. Os rituais de aproximação não têm mais territorialidade", diz Anna Verônica Mautner, psicanalista e colunista da Folha. Aquela velha história de ficar em casa para esperar o telefonema do dia seguinte é velha mesmo. Não é mais preciso marcar, não tem de esperar e não há o que cobrar.

Cobrança pode ser chato, mas, se não vem à tona, abre espaço para adiar o compromisso. "As necessidades afetivas circulam com o código velado de que podem ser definidas mais tarde", diz Colognese. Enquanto esse mais tarde não chega, o relacionamento fica numa espécie de limbo, que pode ser cômodo para alguns, mas, em geral, é frustrante.

"A questão básica é vencer a solidão. E isso só acontece quando há convívio de verdade, não só na superficialidade, só no mundo das aparências", diz Farias.

A estudante de moda Helena Carvalho, 22, passou dois meses sem saber definir o seu relacionamento amoroso. Havia afeto e intimidade de um lado, mas não o suficiente para compartilhar a parte menos agradável da vida, como os problemas do outro, o que significa assumir responsabilidade pelo outro. "Essa indefinição privilegia cada um como indivíduo. Mas daí fica individual demais", diz a estudante, que, num certo momento, resolveu pôr as cartas na mesa. A atitude da cobrança funcionou e ela, satisfeita, diz que é muito melhor saber que está namorando, e não apenas "conhecendo" indefinidamente uma pessoa.

Pode parecer apenas uma questão de palavras, mas, neste mundo dos signos em que todos vivem, os nomes podem revelar a espessura, a profundidade das coisas, diz Farias. "A palavra namoro tem amor dentro. Transa já é mais impessoal, vem do vocabulário comercial. E ficar é um verbo volátil, um estado efêmero."

O "estado efêmero" pode até satisfazer algumas necessidades imediatas (de companhia, de sexo ou de afeto), mas não basta. "Não estamos programados para viver sozinhos. A idéia é ter vínculo, ter amor", diz o psicanalista Colognese. Problema: as pessoas têm medo de se comprometerem com os próprios desejos. "Se não se comprometem com suas próprias necessidades, não podem se comprometer com os outros", diz a psicóloga Suely Gevertz. Para ela, o ser humano faz de tudo para evitar o conflito com suas angústias. Só vai enfrentá-lo se for impulsionado por exigência externa.

Em geral, quem assume esse papel é a mulher. "Quem acaba se envolvendo e esperando compromisso é ela, que tem mais facilidade de se envolver a partir do sexo", diz o psiquiatra Ronaldo Pamplona. Mas elas também estão adiando a cobrança. Para Koury, o culto ao sucesso individual é a prioridade desta época e, desde que entraram no mercado de trabalho, as mulheres colocaram as necessidades profissionais à frente das afetivas. "Aí, fecha o círculo: as pessoas buscam uma autonomia fora da maturidade, não são cobradas para enfrentar os desafios do crescimento, portanto não vêem necessidade para amadurecer", diz o psicanalista Colognese.

A sociedade também aceita os relacionamentos amorosos sem compromisso para homens e mulheres, e ficam todos numa situação cômoda e insatisfeitos --ou só parcialmente satisfeitos por um tempo tão indefinido e impreciso como o estranho gerúndio "estar ficando".

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