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20/01/2005 - 10h37

Com remédios na berlinda, consumidores adotam uso mais cauteloso

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ANA PAULA DE OLIVEIRA
da Folha de S.Paulo

Santo remédio é um conceito ultrapassado. Desde que o mundialmente conhecido antiinflamatório Vioxx foi retirado do mercado por aumentar as chances de ataques cardíacos e acidentes vasculares, uma avalanche de dúvidas a respeito dos possíveis riscos embutidos nos medicamentos vem tirando o sono (e o lucro) de fabricantes e deixando pacientes e classe médica em polvorosa.

Marcado como o caso de maior repercussão, o Vioxx não foi sozinho para o paredão. Os também antiinflamatórios Celebra e Bextra tiveram sua segurança questionada em estudos por possíveis problemas cardíacos, embora continuem sendo vendidos. Antidepressivos foram parar na berlinda sob suspeita de aumentar o risco de suicídio em crianças e adolescentes. Até a inofensiva Novalgina, há 80 anos no mercado mundial, passou a ser questionada, conforme estudos realizados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), acusada de provocar reações alérgicas, vômito e hemorragia gastrointestinal.

E agora, doutor? O sistema que gerencia a aprovação e segurança dos medicamentos está falido? Como é possível usufruir das benesses dos remédios sem com isso colocar em risco a sanidade física e mental do usuário? O Equilíbrio joga luz sobre a indústria e outras questões relacionadas a medicamentos.

Existe droga segura?

Nenhum remédio está totalmente livre de riscos. Vide qualquer bula: mesmo na de um produto que não requer prescrição médica constarão as mais variadas reações adversas. "A regra na medicina é: remédio que não faz mal não faz bem", define o médico Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. Ou seja, para curar, qualquer remédio tem de fazer algum tipo de mal --o ideal seria que esse mal ficasse restrito à patologia que se pretende resolver, mas o mecanismo do corpo humano é intrincado e bem mais complicado de administrar.

Como qualquer droga tem prós e contras, o que os órgãos regulatórios e médicos avaliam é se o bem que o remédio vai proporcionar ao paciente é maior do que os possíveis males. "Os benefícios devem superar os riscos, já que todo remédio é uma substância estranha ao organismo", diz o presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, Gabriel Tannus.

É essa relação de risco-benefício que determina como o remédio será inserido no mercado: com ou sem tarjas, exigindo ou prescindindo de receita. Os efeitos colaterais de um remédio de consumo livre são sensivelmente menores que os de um "faixa preta", que pode requerer até retenção de receita.

Da pesquisa à farmácia

O caminho normal para um medicamento chegar às prateleiras inclui várias etapas. Primeiro, ele passa por testes em animais no chamado estudo pré-clínico, uma espécie de passo zero que dura de três a quatro anos. Alcançado o efeito esperado, começam as pesquisas em humanos.

Na fase um do estudo, para determinar segurança e dosagem, são analisados de 20 a 80 voluntários saudáveis por um ano. Na segunda etapa, o resultado de dois anos de exames em cerca de 100 a 300 pacientes indica a eficácia e aponta os efeitos colaterais. Na terceira fase, 1.000 a 5.000 voluntários são monitorados para que reações adversas reveladas apenas após o uso prolongado sejam detectadas. Mesmo depois de concluídas essas três fases, a FDA (Food and Drug Administration, agência norte-americana que regula alimentos e fármacos) ainda necessita de dois a três anos para reunir e analisar o material pesquisado para só então estabelecer dados conclusivos.

Depois desse processo final a droga é registrada e liberada para a venda --o que não quer dizer que está tudo resolvido. Quando começa a ser utilizado por pessoas com os mais variados problemas, características e comportamentos, o novo medicamento passa para a fase quatro, que prevê a monitoração do uso em larga escala.

Hora da verdade

É nessa fase que os consumidores acabam fazendo o papel de cobaias coadjuvantes. Problemas raros, idiossincrasias, interações inesperadas e até o uso incorreto ou abusivo vão ampliando o leque de conhecimentos sobre a droga.

Exemplo: por uma questão de ética, o laboratório não pode, no estágio de testes em humanos, submeter alguém a uma superdosagem para aferir seus resultados --entretanto casos de automedicação desenfreada revelados na fase quatro são valiosos para atestar o que pode ou não dar errado.

Além disso, uma rede de hospitais e clínicas notifica os órgãos responsáveis por medicamentos sobre os problemas e efeitos colaterais verificados no dia a dia da prática hospitalar. É a rede chamada de farmacovigilância.

Como dizem os otimistas, tudo tem seu lado bom. Esse mesmo mecanismo que provoca a retirada de medicamentos consagrados do mercado também faz com que sejam atribuídas a eles novas indicações ou reações adversas. Quem comparar a primeira bula de um remédio há bastante tempo no mercado com a bula atual vai perceber as mudanças promovidas ao longo dos tempos.

Da mesma forma, surgem também algumas boas surpresas. Nos anos 80, os médicos começaram a usar a toxina botulínica no tratamento do estrabismo e do blefarospasmo (piscadas excessivas dos olhos) e, a partir dessas aplicações, descobriu-se que ela suavizava rugas e linhas de expressão. O uso em larga escala do Proscar (Merck), lançado para hipertrofia prostática benigna (aumento da próstata), indicou que um de seus efeitos colaterais era o crescimento de cabelos. Resultou no lançamento do Propecia, remédio para calvície. O Viagra primeiramente foi testado para doenças cardíacas. Não deu certo, mas, na pesquisa, foi descoberto um inusitado "efeito colateral": a ereção. Os exemplos são inúmeros.

Eterno enquanto dure

A má notícia é que essa fase de testes não tem fim. Apesar de estar no mercado há mais de cem anos, apenas recentemente foi constatado que o ácido acetilsalicílico (princípio ativo de Doril, Aspirina, Melhoral e Buferin) não deve ser consumido por pessoas com dengue por poder agravar uma hemorragia --informação obrigatória apenas na propaganda do produto, e não na bula. Esta, aliás, com suas letras minúsculas e informações que podem mais confundir em vez de informar, tem seus dias contados. Ainda neste ano, o novo padrão de bulas, elaborado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), deve chegar às prateleiras com dados que realmente interessam ao usuário --e em letras bem maiores, como já ocorre em outros países.

O que se questiona

A desconfiança ultrapassou drogas e laboratórios e chegou às agências reguladoras dos medicamentos --principalmente a FDA (Food and Drugs Administration), agência norte-americana que regula alimentos e fármacos e um parâmetro respeitado em todo o mundo. Uma das maiores críticas é que a FDA tem se sujeitado às pressões da indústria farmacêutica para aprovar remédios sem que todos os estudos estejam devidamente concluídos.

A prática de apressar a liberação de remédios --conhecida como "fast track" (via rápida)-- começou a ser discutida no final dos anos 80 para adiantar a comercialização de medicamentos contra a alta letalidade da Aids. Dessa maneira, drogas essenciais podiam chegar ao mercado com apenas a fase dois concluída, o que significa que os estudos determinaram apenas eficácia e efeitos colaterais calculados --e não imprevisíveis reações adversas. Em média, uma nova droga demora 12 anos para chegar às farmácias. Com o "fast track", esse período cai para a metade.

Os críticos dizem, porém, que isso passou a ser usado de forma indiscriminada, contra males bem menos graves e movidos apenas pela busca do lucro.

Paulo Olzon Monteiro da Silva, professor de clínica médica da Universidade Federal de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, contudo, é cada vez mais cético em relação à forma que as pesquisas de aprovação são conduzidas.

O médico americano John Abramson afirma que, em 2000, apenas 35% das pesquisas patrocinadas por empresas eram conduzidas em universidades, o que garantiria maior credibilidade. O resto, por empresas particulares.

Segundo Olzon, o reflexo de notícias como essa, somadas a proibições, restrições e advertências de certos medicamentos trazem insegurança, medo e confusão generalizada entre pacientes e até médicos.

No Brasil

O mecanismo do "fast track" não é adotado pela Anvisa, o que pode levar a agência brasileira a rejeitar medicamentos aprovadas pela similar norte-americana. "Não é que discordemos, mas nós não temos esse recurso (de apressar a aprovação de um medicamento sem todos os estudos concluídos). Nossa posição é mais cautelosa", explica Sérgio Nishioka, infectologista, epidemiologista e gerente da área de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos da Anvisa.

Segundo Nishioka, o órgão tem 20 técnicos responsáveis pela análise de dados das pesquisas fornecidas pelo fabricante e pela inspeção dos aspectos sanitários dos estudos. São eles que avaliam quem pode e o que não deve ser vendido no país.

Segundo ele, esse número é baixo e deve dobrar ainda neste ano. São poucos os pedidos de registro de novas substâncias, de acordo com Nishioka, mas ocorrem centenas de novas associações, indicações e prescrições de um componente ativo já aprovado, como quando se constata cientificamente que um remédio para dor de cabeça, por exemplo, pode agir no coração.

Desde 2003, uma nova legislação da Anvisa demanda a renovação de registro, a cada cinco anos, de todos os remédios existentes no Brasil. "É um momento em que é possível retirar do mercado medicamentos que não tenham evidência científica ou que possuam efeitos nocivos", diz Nishioka.

Males que vêm para bem

É possível extrair uma lição da polêmica dos medicamentos: tanto médicos como pacientes estão mais cautelosos na prescrição e no consumo das drogas, questionando a eficácia da prescrição. "O médico hoje está sendo mais parcimonioso na prescrição, analisando de forma mais abrangente o histórico clínico do paciente", acredita o reumatologista Sebastião Cézar Radominski, professor da Universidade Federal do Paraná.

A saída é mesmo uma boa conversa entre médico e paciente. Soluções como a da modelo e promotora de eventos Leila Sylvia Kristinas, 23, que está na foto de capa do caderno, são pouco práticas, como ela mesmo reconhece. Hipocondríaca assumida, Kristinas evita consumir medicamentos novos por não saber qual o efeito no organismo a longo prazo. "Mas, se não houver outro jeito, é óbvio que não vou deixar de fazer algum tratamento com remédio que não conheço. O jeito é entregar minha sorte e vida à ciência."

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