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20/12/2001 - 08h18

Boa leitura ajuda a compreender melhor o mundo

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LINA ALBUQUERQUE
free-lance para a Folha

Enquanto a fórmula dos manuais de auto-ajuda -espécie de pílulas de Prozac em forma de livro- brilha na lista dos mais vendidos, as grandes obras da literatura prosseguem alimentando a incurável e fundamental questão -"quem sou eu?"- que começou a perseguir o homem antes de Gutenberg ter inventado a máquina impressora.

No fundo, as pessoas lêem por prazer ao conhecimento. Trata-se de um impulso humano natural, o de conhecer, e existe até um nome técnico para isso: "epistemofilia". Mas elas também lêem porque querem se encontrar, reconhecer-se e compreender-se por meio das palavras escritas. Depois de Gutenberg, ficou mais fácil para o simples mortal sonhar um pouco mais alto. E dividir a sua existência com Ulisses, Hamlet, Fausto.

No recreio com Capitu
"Os grandes livros são portas para vivências que o homem comum não teve", diz o escritor e jornalista Luiz Carlos Lisboa no recentemente reeditado "Tudo o que Você Precisa Ler sem Ser um Rato de Biblioteca" (Editora Papagaio), um guia de literatura saído das fichas de leitura que o autor faz desde os 14 anos de idade (ele tem 72), quando escalou a estante mais alta da biblioteca do pai a procura de livros de sexo e acabou descobrindo Machado de Assis. A companhia de "Dom Casmurro", de Machado, além de render uma suspensão justificada pelo estatuto do Colégio Santo Inácio, que não permitia a leitura durante o recreio, levou o autor a se transformar num rato -ou num "verme", conforme o termo inglês similar- de biblioteca.

Pura sorte Lisboa ter sido "desvirginado" pela maliciosa Capitu na adolescência e despertado cedo para a complexidade da alma humana. Inexperiente, o então adolescente contava apenas com a curiosidade a seu favor. "O leitor precisa chegar aos livros essenciais levado pela curiosidade que o faz sempre buscar a resposta para o mistério de estar vivo", escreveu no prefácio do seu guia, tratando de ocultar a sua vivência pessoal. Hoje, o seu critério de seleção baseia-se no repertório adquirido e também filtrado ao longo da vida. "São essenciais aqueles livros que exerceram grande influência e, ao mesmo tempo, sofreram influência de grandes autores", completa a definição.

Leitor de si mesmo
É de modo para-doxal que a leitura acaba atuando como um fator de qualidade de vida. Quem apanha um livro em busca de uma resposta, em geral, pouco ou nada encontra. Quem lê por prazer, movido por interesse e curiosidade pelo mundo, recebe de volta o poderoso estímulo da "identificação" que provém da arte, e aí, sim, a realidade pode ser, se não transformada, compreendida com maior profundidade.

"Na verdade, todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo", afirmou Marcel Proust, autor da importante obra "Em Busca do Tempo Perdido". A frase foi extraída pelo escritor britânico de origem suíça Alain de Botton e faz parte do livro "Como Proust Pode Mudar a Sua Vida" (Editora Rocco), uma mistura de biografia e crítica literária que se faz de auto-ajuda apenas no título.

Para Alain de Botton, Proust ajuda muito quando observa: "Não se pode ler um romance sem atribuir à heroína os traços da mulher amada". Ou então: "Se lermos a obra-prima de um homem de gênio, sentiremos prazer ao descobrir nas suas reflexões alegrias e tristezas que também são as nossas, mas que estavam reprimidas: um mundo inteiro de emoções que desprezávamos e cujo valor se torna subitamente evidente ao fato de as lermos em um livro".

Os efeitos benéficos ou deletérios da leitura, segundo os críticos, têm menos a ver com a trama da história do que com a capacidade das palavras de invocar a curiosidade e a imaginação em torno da vida.

Os filmes e os livros
Todos os instrumentos que a humanidade até hoje inventou são uma extensão da mão, ao passo que o livro é um prolongamento da imaginação, diz, citando Jorge Luis Borges, Luís Augusto Fischer, colunista da Folha e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

"A diferença entre um filme e um livro é que há vários sonhos no meio do acompanhamento da história escrita", diz Fischer. Os sonhos estão no meio da leitura porque ler é sujeitar-se a um tempo diferente. Talvez seja justamente esse um dos maiores benefícios que o livro traz. Primeiro, porque quem lê como que "ganha" o tempo para si. Controla assim o tempo, fazendo dele o que bem desejar. "Num mundo que abomina o silêncio e a solidão, a leitura é um dos poucos exercícios que valoriza o espaço individual", ressalta Cristovão Tezza, autor de "Breve Espaço entre Cor e Sombra" (Editora Rocco) e professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná.

Depois -e não menos importante- a leitura faz com que presente, passado e futuro se fundam e fluam justapostos à imaginação. Um mesmo livro lido em momentos diferentes tem as suas interpretações revistas e atualizadas pelo desenrolar da vida.

Ao longo de uma leitura, é possível reter um amontoado de palavras capazes de despertar para experiências antigas, reconstituir algum sentido -ou falta de sentido- no labirinto da memória. Um livro revira o baú das lembranças e, de repente, estacionando os olhos numa ou noutra página, o leitor reconcilia-se com alguma experiência antiga. Compreende assim um pouco mais do seu passado. Ou, numa outra inversão do tempo linear, encontra algum tipo de "preparação" para os acontecimentos futuros -Nietzsche dizia que a arte antecipa a vida sob muitos aspectos.

"Concertos interiores"
Os adeptos da leitura dinâmica podem não gostar, mas o prazer de ler pouco ou nada se beneficia da rapidez. Isso vale, claro, para a leitura de um livro -não de jornal, outdoor ou legenda de filme.

Também não se aplica àqueles que, mesmo com o hábito de devorar diversas obras ao mesmo tempo, sempre farão sua parada mais demorada em uma ou outra página aberta sobre o topo da pilha de livros que vai aumentando ao lado da cama. Ler muito não é o mesmo que ler muito depressa.

A qualidade vagarosa da leitura dá ouvidos aos "concertos interiores", comparou Gaston Bachelard em "A Poética do Devaneio" (Martins Fontes). O filósofo insiste em um -único- conselho: não ler rápido demais e cuidar para não engolir trechos demasiadamente longos. "Sim, mastiguem bem e bebam em pequenos goles", orienta.

Mas que grandes livros são esses que, lidos sem nenhuma pressa e, quem sabe, até com uma caneta na mão, podem acender o estopim que falta para as coisas serem mais profundamente compreendidas na vida ou na imaginação de uma pessoa? São aqueles capazes de sobreviver à prova crucial do tempo. "Cruel para a maioria das obras, o tempo traz à obra-prima a suprema consagração", afirma o filósofo Michel Guérin no ensaio "O que É uma Obra?" (ed. Paz e Terra). Assim é a natureza de um clássico. Mas, afinal, por que lê-los?

Os clássicos e o presente O escritor ítalo-cubano Italo Calvino transformou essa questão em nome de livro - "Por Que Ler os Clássicos" (Companhia das Letras)- e deixou bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e onde chegamos. São demarcadores de lugar - "Quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia"-, mas merecem ser alternados com a leitura do presente.

"É clássico tudo aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo", diz Calvino.

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