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06/02/2001 - 03h49

Carlinhos Brown lança CD e tenta se reafirmar no mercado

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PEDRO ALEXANDRE SANCHES, da Folha de S.Paulo

É hora da verdade para Carlinhos Brown, 38. Seu novo CD, "Bahia do Mundo - Mito e Verdade", precisa varrer em sua passagem as vendas nada industriais de "Omelete Man" (98) e as confusões armadas no Rock in Rio.

O artista baiano sobrevive de contradições: sua gravadora já o achou "cabeça"; ele parece difícil para o público de axé music, mas também sofre resistências na "elite". No Rio, causou revolta de metaleiros fãs de Axl Rose. Na Bahia, sexta passada, recebeu socorro do sogro, Chico Buarque -que pulou com ele uma versão samba-reggae biruta de "João e Maria" (77)-, mas causou desconfiança numa platéia ainda assim obediente a seus comandos.

O que é mito e o que é verdade em Brown? "Aí, cada um ache o seu", despista, no seu Candeal natal, autêntico líder comunitário de origem pobre e muito espírito lutador. Leia trechos de entrevista.

Folha - Quem é seu ídolo musical?
Carlinhos Brown -
(Pensa.) Por incrível que pareça, é Mestre Pintado do Bongô, que nasceu em Aracaju e veio morar neste bairro do Candeal. É de outra nação, da nação de Ketu -o Candeal é Angola. Me mostrou improvisação com percussão, muito antes de eu conhecer Miles Davis. Com ele eu soube o que era o Trio Mocotó e daí Jorge Ben. Ele tinha bandas do que se chama cuban jazz, tocava nos cruzeiros que vinham do Caribe e paravam na costa baiana. O cuban jazz aproxima muito a Bahia por causa da cultura iorubá. Cuba é iorubá, e a Bahia também.
A partir disso, comecei a gostar de Pérez Prado (artista cubano que foi o "rei do mambo" a partir dos anos 40). Para mim, foi ele quem inspirou James Brown. Fiquei louco com um cara chamado Joe Tex (soulman dos anos 50 nascido no sul dos EUA). Ele conseguia ser mais musical nos arranjos que James Brown. A partir daí, fui olhando, conhecendo coisas e cheguei ao pai do funk real, Sly Stone. Depois vieram os filhos, Funkadelic, até chegar ao hip hop.

E eu conheci o Elvis negro, um amigo meu aqui do Candeal, chamado Jorginho. Por causa dele conheci Elvis Presley, o mais latino dos norte-americanos. Talvez eu seja um Elvis Jobim, um Elvis Jobim Porter, porque não adianta eu falar da canção mundial sem falar de Cole Porter. Vi tudo na "Sessão da Tarde", Bing Crosby, Nat King Cole, Louis Armstrong, Frank Sinatra, Sammy Davis Jr.. Parecia a jovem guarda deles.

Enquanto isso, aqui na Bahia toda a cultura americana levava a cultura baiana a criar blocos carnavalescos com baterias africanas, os blocos de índios apache, chayenne, sioux... Uma vez fui sair no Carnaval, ainda criança, acabei pisoteado. Um índio apache me guardou do meio do povo e me ergueu do meio dos pisotões. Foi um ato de heroísmo.

Foi na rua que peguei o apelido de Brown, porque começava a me comportar com calças bocas-de-sino, incentivado pelos Black Panthers muito mais que pela música. Sou fã de James Brown, mas o Brown é mais por causa do (ativista negro de esquerda) H. Rap Brown. Ele está preso agora, mas não é por ser renegado que vou cuspir no prato que comi.

Já o árabe vem muito de ter conhecido Nelson Maleiro, um cavaleiro de Bagdá que fazia afoxé com índios. Ele usava sapatos de bico, tipo Aladim. Fui andando, fui vivendo a vida e percebi que no Candeal o que não era africano era libanês pobre, pardo, judeu. Somos o judeu e o árabe em paz, o Brasil já conseguiu a paz de Israel há muito tempo. Aí o que eu descobri? Que os aboiadores que aqui viraram plantadores traziam um canto de tanger gado que não tinha diferença nenhuma do canto árabe.
Não é a intenção parecer árabe, é natural, as culturas são próximas. A
música esclarece que não existe barreira nem distância entre os homens.
A miscigenação vem matar as raças, mas não matar no sentido duro. É matar para surgir a raça verdadeira, a única, que será a cor nova.

Folha - Uma cor única não mataria identidades culturais?
Brown -
A cultura não pertence a facções étnicas. O branco fica menos branco, o negro fica menos negro, o branco e o negro ficam mais índios, mais mongóis. A miscigenação vai demonstrar o desaparecimento do preconceito. É como se todos os homens se conduzissem a um construtivismo de vida eterna.

Folha - Se acredita nisso, por que adotou um discurso nacionalista contra os roqueiros do Rock in Rio?
Brown -
Qual é o caso? O discurso dos meninos do rock, dos Guns "N" Roses? Gosto muito mais da música que do discurso, que é neonazista, antigay, racista. O cara pode estar até querendo despertar uma coisa diferente, mas os fãs, não, preferem jogar garrafa. Poxa, estou no Brasil, na minha casa, não aceito racismo. Sou negro, fui eu que tomei no lombo, por que vou aceitar? Não estou falando que fui vítima de racismo. Fui vítima de discursos. De certa forma visto a camisa da música brasileira, sim, porque ali eu tinha elementos do Brasil, músicas que o Brasil já consagrou. Cara tinha que reclamar com sabedoria, pela saúde da música brasileira.

Folha - Você se acha um pop star?
Brown -
Não. Sou um "pop chão", um homem que tenha veículo por todos os lugares onde andar. Sou o descompromisso hoje na música. Me dou o luxo de cantar uma música que ninguém conhece no palco. Como renovar sem ouvir? Que comunicação é essa? É preciso renovar, mas ninguém ouve. O artista tem de fazer pensar, provocar reação.

Folha - Esse é um discurso contrário ao da axé music, não?
Brown -
Talvez seja a música que mais fez pensar. O que nós fizemos com percussão Beethoven, Chopin e Rachmaninov não fizeram. É o discurso prático. Encadeou movimentos sociais de que o Brasil não tem nem noção. Não faço discurso de crítica ao governo, porque somos da prática. O discurso literário se esvaziou.

Quando falo que não sou axé music, é porque faço parte de um movimento que originou a axé music, que é paralela a ele. E quem mais acobertou o axé? O ser humano que não tem acesso a livro, não lê jornal, vê só TV. O que vai se cobrar de um povo a que nem se oferece educação direito? É fazer esse discurso alegre, ganhar dinheiro e investir na comunidade.
Esse é o caminho da arte e dos artistas no futuro. O novo artista é isso, o pop star distante já era. O artista tem o dever de tentar transformar. Sou a tentativa. Se não provocar o gosto não serve. Fica morto, não vira obra.

Folha - Por que suas letras, mesmo simples, parecem complicadas?
Brown -
Mas por quê? Não são, não. São tão ligadas à cultura do Brasil, é sinal que a gente não conhece nosso país. Você sabe o que é "xangó"? É um peixe que é assado ao sol, com água do mar, não precisa tempero. No sertão isso com farinha é tão usado quanto o maior caviar que possa existir.

Folha - Cantar "vê xangó em dona Preta" ajuda a entender isso?
Brown -
Você continua a não saber o que é xangó porque não viveu. Se um dia alguém for estudar o Candeal, vai encontrar o xangó e vai encontrar essa referência, isso se chama memória. Não sou eu, é a própria simplicidade da vida que arremata, com sofisticação que nem eu domino. É plasticidade musical que busco. O que quero dizer não significa nada. Não me considero poeta, compositor, nada disso -talvez mais artista plástico que todas essas coisas.

Folha - Suas opiniões contra o hip hop não contradizem seu discurso?
Brown -
O hip hop brasileiro não influencia uma pessoa a matar outra, chacina, tráfico. O Brasil tem uma linguagem própria, e essa música não é a representatividade urbana brasileira. Não é. Não é. Eu sou a Bahia do mundo, o Brasil do mundo, que aceita o mundo, mas não se deixa corromper nem ser engolido por ele. Não tem graça parecer que estou em Nova York, prefiro ir a Nova York. Minha música é brasileira, então é sem metralhadora.

Folha - Por seu próprio discurso, tenho que entender que a música deles é tão brasileira quanto a sua.
Brown -
Mas ninguém está dizendo que não é. Só digo que é uma música extremamente influenciada... É Jobim que inspira os Racionais? Não é. É a voz dos presos, da situação favelada. É fortíssimo, a realidade. Se essa é a realidade que se quer, vamos para ela. Continuo na minha. Não bole ninguém na minha vida, no Candeal não há tráfico, metralhadora.
 

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