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10/02/2001 - 04h44

Obra do dramaturgo responde aos Evangelhos

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ANTÔNIO ROGÉRIO TOSCANO, da Folha de S.Paulo

É loucura, mas tem o seu método: "Nelson Rodrigues, Evangelista" é um manifesto antiformalista que reencontra na dramaturgia rodriguiana o "fundamento ético do nosso mundo".

Resgata da sacromaquia cristã e de outras moralidades -Cinderela, Branca de Neve, Drácula- novo processo de legitimação da arte: só por meio do sacrifício criador, violento e catártico, é que se evita a barbárie social: "Só a violência artística põe fim à violência social".

Lançado em momento oportunista, quando se celebra efeméride de 20 anos da morte do dramaturgo, intensifica o odor mítico que exala da flor obsessiva e desagradável que é Nelson Rodrigues a vedete carrancuda do teatro nacional.

Leituras de Nelson Rodrigues há muitas... Até aqui, então, nada de novo. Senão no modo pitoresco como o autor, Francisco Carneiro da Cunha (irmão da atriz brasileira radicada na França Juliana Carneiro da Cunha), 56, opera uma superposição de matrizes míticas para provar, mais para si mesmo que para nós outros (tamanho o seu hermetismo de esgar profético), que o ato criador de Nelson Rodrigues desdobra-se, obra após obra, como resposta religiosa aos Evangelhos.

Drama da paixão subliminar, mas óbvio ululante não percebido até hoje pelos críticos, Nelson Rodrigues teria escolhido, como o Jesus Cristo satanás, forjar a iniciação de sua vida pública no teatro e escrever sua primeira peça, "A Mulher sem Pecado" (1941), aos 29 anos.

Guardaria para a madureza dos 31 o seu "Sermão da Montanha": "Vestido de Noiva" (1943). Com 33, disposto à crucificação, carregaria o fardo de "Anjo Negro" (1946, a peça estreou em abril e o aniversário de Nelson Rodrigues era só em agosto!) como seu "opus magnum".

Em alguns momentos, a fantasia se traveste em simpático jogo de quebra-cabeças e pequenas revelações quando o estudioso, resoluto, mergulha no interior da dramaturgia para resgatar de seu orfismo o paraíso perdido.

O Coxo da Colombo, por exemplo, voaria de maltrapilho à condição de "espírito santo criador". Mesmo sem se configurar como personagem de "A Mulher sem Pecado", o coxo, apenas insinuado, abrigaria símbolo de vitalidade oposto ao imaginário possessivo da casa de Olegário.

Assim como a Crioula das Ventas Triunfais, da derradeira peça de Nelson Rodrigues, "A Serpente" (1978) -e ao contrário das "botinas constipadas" de "Dorotéia" (1949)- o Coxo da Colombo seria representação vital porque está ferido de amor.

Cândida leitura se não fosse justificada com alguma comicidade: porque "Colombo significa pombo" e porque "a confeitaria com seu nome na Cidade Maravilhosa da década de 40 era um ambiente de paz e deliciosos manjares. Que mais precisaria ser dito para nos remetermos à morada de Deus?".

Regido por forças obscurantistas ("só os profetas enxergam o óbvio") e imerso na caça de indícios insistentes nas bordas das obras, Cunha nos faz lembrar do comportamento de um beatlemaníaco crente no "Paul is dead!" (Paul está morto).

É muito sagaz quando escapa dos Evangelhos e volta à história, para encontrar no estilhaçamento do sujeito de Geni -a suicida de "Toda Nudez Será Castigada" (1965)- retrato da ambivalente angústia de Nelson Rodrigues, um ano após o golpe militar que reinstaurou a ditadura no Brasil.

Crítico da crítica, tal leitura rejeita veemente e nominalmente o racionalismo de Sábato Magaldi e, ainda mais fervoroso, despreza Décio de Almeida Prado e o expressionismo de Ziembinski -que teria incompreendido a simbologia rodriguiana.

Franco-atirador do pensamento, munido de metralhadora giratória, anseia por misteriosa inversão, a que não temos acesso, sagrada. Não deixa de ser curiosa esta proposta de terrorismo, que luta com todas as forças pela domesticação evangélica de Nelson Rodrigues na qual encontraríamos remissão.

Radical assumido, acredita que a salvação do mundo só se dará como decorrência imediata da representação das peças de Nelson Rodrigues para as multidões, mas não conforme o gosto dos formalistas. Ao fim dos capítulos, o aviso: se encenada com o mesmo amor com que foi criada, a obra de Nelson Rodrigues salvará pela purificação nela os pecados que representa. Quanto à teatralidade, nenhuma palavra.

  • Antônio Rogério Toscano, 28, é dramaturgo e professor de teoria teatral

    Nelson Rodrigues, Evangelista
    Autor:
    Francisco Carneiro da Cunha
    Editora: Giordano
    Quanto: R$ 20 (208 págs.)
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