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18/02/2001 - 22h47

Crítica: "No Limite" entre o chato e o filosófico

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HÉLIO SCHWARTSMAN
Colunista da Folha Online

Confesso que não compreendo bem essa onda de "reality shows" que tomou conta das TVs, no mundo e no Brasil. Por aqui, o programa que melhor representa essa tendência de substituir a ficção pela "realidade" é "No Limite", da Rede Globo, que já está em sua segunda edição.

Em princípio, o telespectador típico, quando liga o aparelho de TV, está em busca de recreação, uma esfera tradicionalmente mais afeita ao domínio da ficção do que do real. Nem poderia ser de outra forma. A realidade é, no mais das vezes, aborrecida, sem ritmo ou então desmedidamente cruel, arrasadora. Não há romance possível na queda de um avião que não deixe sobreviventes.

No geral, a novela é infinitamente mais interessante que o mundo real, não importando muito aqui o significado de "real". É verdade que a arte imita a vida, mas o faz melhorando-a, tornando-a mais romanesca, mais humana.

Vale lembrar que "recreação" vem do verbo latino "recreo", que significa "criar de novo", "renovar". Quando em referência ao corpo ou à mente, "recreo" tem o sentido de "recobrar-se", "convalescer", "estimular" e, daí, "divertir-se". Assim, a diversão, que tem poderes curativos, é essencialmente algo recriado, algo aperfeiçoado pelo engenho humano.

O paradoxo dos "reality shows", contudo, não está num suposto desvio das funções recreativas da TV. Na verdade, chamar qualquer coisa exibida na TV de "reality show" é uma impostura, uma tremenda de uma mentira.

Não estou afirmando que até o noticiário televisivo seja necessariamente falso, embora, num sentido mais amplo, essa interpretação seja cabível, e não só para a TV. Quero dizer que o que é chamado de realidade em "No Limite" ou qualquer outro programa do gênero tem muito pouco de realidade. Os personagens se dirigem à câmera de um modo sem paralelo no mundo real. A câmera se torna personagem, um interlocutor que não existe de verdade. Os protagonistas fazem diante das lentes coisas que não fariam em circunstâncias normais. Cria-se uma situação em que é impossível "observar" sem, ao fazê-lo, alterar o observado.

Nem mesmo para o telespectador o "reality show" guarda realismo. Para começar, as imagens são todas devidamente editadas. E é exclusivamente nessa edição que a história é contada. Não existe uma narrativa natural, um ponto de vista absoluto. A temporalidade da ação também é totalmente alterada. É fácil imaginar o quão maçante seria um "No Limite" em tempo real, em que cada segundo transcorrido na chapada fosse levado sem edição à casa do telespectador. As várias câmaras necessárias para contar integralmente as histórias de todos os personagens exigiriam um tempo de transmissão equivalente às 24 horas do dia multiplicadas pelo total de dias e pelo número de participantes. Seria uma programação que irritaria até faquires pacifistas em coma profundo.

Realidade na TV é uma impossibilidade teórica. Mesmo eventos sobre os quais a câmera em princípio não atua, como uma partida de futebol, têm sua narrativa definida pelos câmeras e pelo editor, de modo não-natural.

Se fosse dado ao árbitro consultar um "replay", o próprio curso do jogo seria alterado pela TV. Aquela falta feita às costas do juiz não passaria impune, a incidência de pênaltis não-marcados seria fortemente reduzida.

Num certo sentido, quando um "reality show" se proclama "real", está tentando dizer que é uma ficção de outra ordem, uma representação que permanece representação, mas que tem a pretensão de ser uma ficção menos fictícia do que, digamos, a novela.

Parece haver aí uma tentativa de aproximar o mundo da TV do telespectador. A ação que de fato transcorre num "No Limite" é pífia. Em termos objetivos, os eventos não passam de uma gincana de adolescentes _e adolescentes particularmente imbecilizados, acrescente-se. O que seduz no programa não é, portanto, seu conteúdo propriamente dito, mas o fato de ser protagonizado por gente "de verdade" e não artistas. É notável que os participantes, ao serem escolhidos, já se tornam astros, esvaziando um pouco a proposta de levar gente normal à tela. O programa passa a operar como loteria. Pessoas comuns obtêm a chance de se tornar astros. Há o prêmio em dinheiro, a fama rápida, a possibilidade de posar para revistas masculinas, femininas ou gays _mais dinheiro.

Todo o processo lembra um pouco o poeminha "Do Rigor na Ciência", de Jorge Luis Borges, em que o escritor argentino conta a história do Império que levou a arte da cartografia à perfeição. O mapa de uma Província era tão detalhado que tinha o tamanho de uma cidade. O mapa do Império ocupava uma Província. O Colégio de Cartógrafos, contudo, achou que era pouco. Fizeram um mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia com ele ponto a ponto. As gerações seguintes, menos viciadas no estudo da cartografia, entenderam que um mapa assim era inútil. Deixaram-no ser destruído pelas inclemências do sol e dos invernos.

"No Limite, 1, 2 ou 3", é um programa meio chatinho, mas um excelente problema filosófico.

Hélio Schwartsman é editorialista da Folha de S. Paulo

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