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17/03/2001 - 04h25

Livros: Biografia desmitifica o bardo

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SERGIO COELHO, da Folha de S.Paulo

Shakespeare é um oceano. E são tantos os que pescam em suas águas que, segundo o crítico Douglas Bush, "só a leitura dos livros que são publicados sobre Shakespeare constitui em si uma carreira". Em todos os lugares surgem centenas de títulos sobre sua obra, e o fascínio gera curiosidade sobre o autor, e biografias que se pretendem "definitivas" se sucedem. Sendo poucos os registros que documentam sua vida, há lacunas que exigem especulação, e é de esperar que cada época tenha o "seu" Shakespeare.

A publicação de uma biografia de Shakespeare enfrenta os mesmos problemas de uma encenação de suas peças: não se trata tanto do que se vai mostrar, mas de que forma os elementos conhecidos serão mostrados. A biografia de Park Honan é a mais nova candidata à "biografia definitiva", por mais que o autor se coloque como um membro de "um projeto cooperativo falho" que nunca estará completo.

Qual a carta que Honan tem na manga? Esse conceituado historiador de Oxford, ao fim de 35 anos de pesquisas, se propõe a restabelecer os fatos isolados da vida de Shakespeare em seus "contextos sociais" originais. É a nova história aplicada ao "mistério Shakespeare".

O título é revelador: não é impositivo como "A Life of William Shakespeare", de Sidney Lee (1898), nem ironicamente aberto como "Shakespeare's Lives", de Samuel Schoenbaum (ainda considerada a melhor biografia de Shakespeare, e que teve uma última edição revista em 1991, cinco anos antes da morte do autor). "Shakespeare: A Life" faz pensar que Shakespeare foi uma existência entre muitas semelhantes, naquela época e contexto, e sempre que faltam dados sobre o cotidiano do bardo, Honan colhe informações sobre cidadãos comuns, que deviam ter vida análoga.

Esse procedimento leva a uma interessante desmitificação do autor. Shakespeare não é um milagre, mas um profissional competente vivendo em épocas conturbadas. Por outro lado, Honan evita a dualidade de títulos como "Shakespeare: Man and Artist" (1938), de Edgar Fripp, talvez por entender que sua obra é consequência direta do modo como viveu. Daí surgem fragilidades de argumentação que vão minando a credibilidade da obra.

Mas os pontos fortes primeiro. Uma informação aparentemente desimportante, mas da qual Honan tira um bom proveito, é a que afirma que Anne Hathaway, ao se casar aos 26 anos com um jovem William de 19, não estava "já um pouco passada", comentário maldoso que mesmo Schoenbaum repete. Um levantamento dos registros paroquiais da região abrangendo "150 anos" teria revelado que 26 é a média de idade com que as mulheres se casavam em Stratford, a cidade natal dos Shakespeare. O que isso muda? Ora, o casamento de alguém que não estava desesperado para se casar tem menos chance de ser um casamento por interesse, logo de se tornar um casamento infeliz. Shakespeare não teria ido a Londres fugindo do lar, mas para obter melhores condições para sustentar a família.

Aos poucos, assim como o arqueólogo faz surgir um dinossauro de um fragmento de osso, Honan nos desenha um Shakespeare ligado às pacatas tradições católicas de sua cidade natal.

Mas é como se, tendo partido de um princípio sólido e inovador, o de situar Shakespeare como um indivíduo dentro de uma cultura, Park Honan tenha se entusiasmado e se esforçado em justificar toda a sua obra por meio de conjecturas sobre sua vida. O estilo fluido e algo poético vai se sobrecarregando com expressões como "é possível", "é provável", "pode ser um exagero inferir que", "até onde podemos intuir"...

Assim, partindo de dados históricos que poderiam dar análises literárias interessantes, Honan acaba caindo em conjecturas arriscadas. Historiador prudente, quando pesquisa a vida e a época de Shakespeare, Park Honan se revela um crítico frágil, quando analisa sua obra querendo extrair dela uma imagem exata do autor.

Curiosamente, ele abandona qualquer prudência ao fazer as críticas das peças. Faz juízos altamente subjetivos como se fossem fatos incontestáveis.

Finalmente, quase ao fim do livro, quando pondera que não é possível uma transferência tão imediata da vida para a obra, e escreve que "[Shakespeare" está presente em todos os seus heróis e, ao mesmo tempo, não está presente em nenhum", o comentário é tão raso que pode rigorosamente se aplicar a qualquer escritor.

Nessa altura, já estamos com saudades de Harold Bloom, Bárbara Heliodora e até mesmo Vitor Hugo, que escreveu em 1864 uma biografia de Shakespeare bastante idealizada, mas assumindo francamente sua subjetividade, sem se propor a uma reconstituição definitiva de Shakespeare.

O essencial de Shakespeare está em sua obra. Seu contexto e as condições em que foi escrita, mesmo que pudessem ser estabelecidos definitivamente, não serviriam para estabelecer um juízo definitivo sobre ela, já que não explicam nem limitam o seu conteúdo. E, se, parodiando aqui a fábula de Gerald Thomas, um Shakespeare reconstituído geneticamente fosse entrevistado por Marília Gabriela, só uma pergunta sobre sua vida seria relevante: "Você é o autor da obra atribuída a Shakespeare?". E, diante de uma afirmativa, seguiria-se uma longa e interessante discussão, na qual Shakespeare acrescentaria mais ponto de vista possível sobre o que escreveu.

Shakespeare: Uma Vida
Shakespeare: A Life
Autor:
Park Honan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (560 págs.)
 

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