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14/04/2001
-
08h32
GILBERTO VASCONCELLOS
Especial para a Folha de S.Paulo
Desde quando Freud estava vivo, rolou um bangue-bangue no interior da psicanálise, rachas, brigas, ciúmes, rompimentos; assim como antes, diante daqueles que evocavam seu nome, Marx, de saco cheio, desabafou: "Eu não sou marxista".
Minha tarefa, prazerosa, de resenhar este livro inventivo, didático e espantosamente claro sobre um assunto obscuro como o intelectual Jacques Lacan, cujo centenário de nascimento se deu ontem, coincidiu com a conversa que tive, no departamento de psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, com a professora Denise Maurano, acerca do fascínio que Lacan exerce no Brasil entre psicanalistas e leigos, talvez por causa do lastro barroco e do predomínio do significante em nossa cultura oralizada, tanto que Glauber Rocha, autor de "Riverão Sussuarana", o romance superlacaniano da literatura brasileira, que é mais para ser ouvido do que lido, espécie de "O Lampião" de Lacan, dizia que o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes havia sido psicanalisado por Lacan em Paris. Fábula, fabulare, fabulação, vem de falar, sujeito falante: pouco importa se o fonos seja ou não ficção.
Além de traçarem com charme e clareza o significado da obra de Lacan de 1930 a 1981, os doutores Cesarotto e Leite não se contentam com o papel de meros repercutores, pois estão preocupados com a absorção particular do saber psicanalítico no Brasil. O específico desejo será o objeto dos "lacano-americanos". Eles escrevem: "Ainda que o inconsciente seja universal, a psicanálise não o é, ou seja, ela é refeita em cada língua, e isto traz consequências".
Luís da Câmara Cascudo informou que a fisiologia é universal, enquanto a psicologia é região. Arthur Ramos acreditava na existência de um "inconsciente folclórico". Tomo a iniciativa de um pequeno reparo: os autores não lidam bem com a palavra "folclore", principalmente aqui onde a língua do folclore é dicionário.
A verdade se traz na língua, embora ela possa nascer em outro lugar. "Não procuro, eu encontro", Lacan falou, mas poderia ser Noel Rosa . Existe o gogó de Gôngora, assim como existe a galáxia de Haroldo de Campos.
Os autores lacanianos assinalam com razão e perplexidade que a psicanálise não medrou na China, Rússia e África. Tema para reflexão linguística. Antes de Lacan auscultar o espelho, padre Antônio Vieira conceituou o espelho como demônio mudo.
Sabemos que Lacan nunca esteve na terra do Sol, mas a sua obra pode servir à descolonização dos trópicos ou será que não é lícito falar em inconsciente colonizado?
Sigmund Freud, sobre quem Jean-Luc Godard, que achava que deveria tomar o poder na Alemanha em vez de Hitler, também não pôs os pés nestas plagas tropicais; todavia ele poderia ter sido recebido aqui por Getúlio Vargas na sequência da Revolução de 30. Os autores sublinham que o Brasil foi um dos primeiros países a aceitar a psicanálise de Freud.
Citam em São Paulo Franco da Rocha e Durval Marcondes, assim como alguns modernistas pelas vanguardas européias, fizeram uso literário das teorias psicanalíticas, a exemplo do Édipo Pau-Brasil de Oswald de Andrade.
Resta acrescentar, no Rio, o médico Silva Mello (1886-1973), de quem Porto Carnero foi assistente, mantendo correspondência com Freud.
Antes de Porto Carnero, cabe destacar Juliano Moreira, o pai da psiquiatria brasileira e que em 1914 proferiu conferência sobre "A Psicanálise de Freud", além de Souza Pinto escrevendo acerca da psicanálise e a sexualidade nas neuroses, antes da famosa conferência do jornalista Medeiros e Albuquerque em 1919, data em que Silva Mello estava voltando da Alemanha, depois de presenciar, desde 1907, o nascimento da psicanálise, defendendo a tese, 50 anos mais tarde, que Sigmund Freud era mouro como Camões.
Certamente Jacques Lacan iria curtir a cena veiculada por Silva Mello: o criador da psicanálise, durante os anos 20, de olho em São Paulo e Rio de Janeiro, comprou gramática e dicionário de português. Foi por um triz que ele não veio conhecer e, quiçá, viver os brasis.
Lacan, o bambambã do inconsciente
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Especial para a Folha de S.Paulo
Desde quando Freud estava vivo, rolou um bangue-bangue no interior da psicanálise, rachas, brigas, ciúmes, rompimentos; assim como antes, diante daqueles que evocavam seu nome, Marx, de saco cheio, desabafou: "Eu não sou marxista".
Minha tarefa, prazerosa, de resenhar este livro inventivo, didático e espantosamente claro sobre um assunto obscuro como o intelectual Jacques Lacan, cujo centenário de nascimento se deu ontem, coincidiu com a conversa que tive, no departamento de psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, com a professora Denise Maurano, acerca do fascínio que Lacan exerce no Brasil entre psicanalistas e leigos, talvez por causa do lastro barroco e do predomínio do significante em nossa cultura oralizada, tanto que Glauber Rocha, autor de "Riverão Sussuarana", o romance superlacaniano da literatura brasileira, que é mais para ser ouvido do que lido, espécie de "O Lampião" de Lacan, dizia que o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes havia sido psicanalisado por Lacan em Paris. Fábula, fabulare, fabulação, vem de falar, sujeito falante: pouco importa se o fonos seja ou não ficção.
Além de traçarem com charme e clareza o significado da obra de Lacan de 1930 a 1981, os doutores Cesarotto e Leite não se contentam com o papel de meros repercutores, pois estão preocupados com a absorção particular do saber psicanalítico no Brasil. O específico desejo será o objeto dos "lacano-americanos". Eles escrevem: "Ainda que o inconsciente seja universal, a psicanálise não o é, ou seja, ela é refeita em cada língua, e isto traz consequências".
Luís da Câmara Cascudo informou que a fisiologia é universal, enquanto a psicologia é região. Arthur Ramos acreditava na existência de um "inconsciente folclórico". Tomo a iniciativa de um pequeno reparo: os autores não lidam bem com a palavra "folclore", principalmente aqui onde a língua do folclore é dicionário.
A verdade se traz na língua, embora ela possa nascer em outro lugar. "Não procuro, eu encontro", Lacan falou, mas poderia ser Noel Rosa . Existe o gogó de Gôngora, assim como existe a galáxia de Haroldo de Campos.
Os autores lacanianos assinalam com razão e perplexidade que a psicanálise não medrou na China, Rússia e África. Tema para reflexão linguística. Antes de Lacan auscultar o espelho, padre Antônio Vieira conceituou o espelho como demônio mudo.
Sabemos que Lacan nunca esteve na terra do Sol, mas a sua obra pode servir à descolonização dos trópicos ou será que não é lícito falar em inconsciente colonizado?
Sigmund Freud, sobre quem Jean-Luc Godard, que achava que deveria tomar o poder na Alemanha em vez de Hitler, também não pôs os pés nestas plagas tropicais; todavia ele poderia ter sido recebido aqui por Getúlio Vargas na sequência da Revolução de 30. Os autores sublinham que o Brasil foi um dos primeiros países a aceitar a psicanálise de Freud.
Citam em São Paulo Franco da Rocha e Durval Marcondes, assim como alguns modernistas pelas vanguardas européias, fizeram uso literário das teorias psicanalíticas, a exemplo do Édipo Pau-Brasil de Oswald de Andrade.
Resta acrescentar, no Rio, o médico Silva Mello (1886-1973), de quem Porto Carnero foi assistente, mantendo correspondência com Freud.
Antes de Porto Carnero, cabe destacar Juliano Moreira, o pai da psiquiatria brasileira e que em 1914 proferiu conferência sobre "A Psicanálise de Freud", além de Souza Pinto escrevendo acerca da psicanálise e a sexualidade nas neuroses, antes da famosa conferência do jornalista Medeiros e Albuquerque em 1919, data em que Silva Mello estava voltando da Alemanha, depois de presenciar, desde 1907, o nascimento da psicanálise, defendendo a tese, 50 anos mais tarde, que Sigmund Freud era mouro como Camões.
Certamente Jacques Lacan iria curtir a cena veiculada por Silva Mello: o criador da psicanálise, durante os anos 20, de olho em São Paulo e Rio de Janeiro, comprou gramática e dicionário de português. Foi por um triz que ele não veio conhecer e, quiçá, viver os brasis.
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