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17/10/2001 - 03h32

Michael Haneke fala à Folha sobre o filme "A Professora de Piano"

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FRANCESCA ANGIOLILLO
da Folha de S.Paulo

O Festival de Cannes deste ano teve de abrir uma exceção diante do novo filme do austríaco Michael Haneke, 59.

Apesar das regras que só permitem conceder um prêmio a cada produção em concurso, os jurados acabaram dando a "A Professora de Piano" as palmas de interpretação masculina e feminina e o Grande Prêmio do Júri.

Pode até ser verdade que Liv Ullmann, ex-mulher e pupilo do diretor sueco Ingmar Bergman, tenha pressionado o júri que presidia, impressionada pelo psiquismo das personagens -a saber, Erika Kohut, uma professora de piano oprimida pela mãe, cuja sexualidade se resolve em masoquismo e voyeurismo, e o aluno muito mais jovem, Walter Klemmer, que lhe oferece um amor com o qual ela não sabe lidar.

Mais certo, porém, é dizer que seria difícil premiar o drama contado por Haneke sem ressaltar as atuações marcantes que ele pediu e conquistou. (De fato, o filme só existe porque Isabelle Huppert aceitou o papel-título.)

Juntem-se à "atmosfera de confiança" que Haneke diz construir no set as interpretações de Huppert (aos 46, a grande dama do cinema francês) e Benoît Magimel (27 anos, 15 atuando e ganhando reconhecimento crescente) e aí está nossa sonata a seis mãos.

Haneke diz que se surpreendeu. "Sempre esperamos ganhar um prêmio, mas não três. Estive em Cannes com "Código Desconhecido". Esperava um prêmio, não ganhei nada. Antes, com "Funny Games", também não. Tive uma bela recompensa, agora."

Foi com filmes como "Funny Games" (97), em que criticava a banalização da violência, que o diretor atraiu a atenção de Juliette Binoche: ela pediu e fez com ele "Código Desconhecido" (2000).

Sua carreira, antes composta por produções germânicas, ganhou mais visibilidade a partir daí, e mais portas se abriram na França depois da recepção para "A Professora de Piano". Seu próximo filme será também uma produção francesa.

Preferindo não dar "interpretações pessoais" ("Faço o filme para colocar questões; respondê-las agora não seria muito produtivo"), Haneke, "refugiado" no interior da Áustria, onde trabalha o novo roteiro, falou à Folha sobre "A Professora de Piano", que estréia nesta sexta na 25ª Mostra BR de Cinema de São Paulo.

Folha - Como o sr. decidiu adaptar o livro de Elfriede Jelinek?
Michael Haneke -
É uma longa história. Eu li o romance há mais ou menos 15 anos e pensei que renderia um filme. Na época, ela não queria vender os direitos, então esqueci. Há dez anos, um amigo meu, ator e diretor, pediu-lhe outra vez, e ela cedeu. Ele pediu que eu escrevesse o roteiro. Só que ele não fez o filme, queria atores americanos e não conseguiu.

Foi quando, depois de "Código Desconhecido", meu produtor perguntou se eu queria filmar aquele roteiro. Eu disse que sim, mas só se Isabelle Huppert fizesse o papel. Ela aceitou, eu retomei.

Folha - Sendo muito psicológica, a trama acaba se construindo basicamente sobre as atuações. O sr. se lembra de algum momento especialmente duro para os atores?
Haneke -
O mais difícil foi fazê-los tocar piano! Eles penaram. A música que você ouve é tocada por um pianista, mas ainda assim eles tinham de mover os dedos.

Voltando às cenas que você imagina, claro que não foi fácil. Mas a gente se entendia muito bem. Meus filmes sempre têm situações extremas, mas nunca tive problemas com os atores, porque crio uma atmosfera de confiança e eles se sentem protegidos, até ousam mais. A única coisa prazerosa das filmagens é o trabalho com os atores. O resto é estresse.

Folha - O sr. faz parte de um grupo de diretores que não deixa a audiência indiferente. O choque direciona sua escolha de temas?
Haneke -
Não, eu escolho os temas que me interessam. Hoje estamos habituados a ver um cinema calmante, de entretenimento, que não nos confronta com a realidade. Mas, se quisermos ver o cinema como uma forma de arte, somos obrigados a esse confronto. E isso, muitas vezes, choca o público de hoje em dia. Eu faço um filme para me confrontar, eu mesmo, com um tema que acho importante, grave. Nunca tenho a idéia de chocar.

Folha - A história do filme é sobre dois músicos. A música é importante para o sr.?
Haneke -
Eu adoro música. Queria ser pianista, mas não tinha bastante talento. Ao contrário de Erika Kohut, tive um bom pai, compositor, que me aconselhou a desistir. Tenho tanto respeito pela música que não a uso nunca nos meus filmes, a não ser que haja alguém tocando. Eu pude utilizá-la aqui porque é um dos temas.

A coisa mais interessante desse filme, para mim, era mostrar essa evidência triste: a beleza da arte não muda a dor da vida. No filme, temos essa música sublime e, do outro lado, gente que trabalha com essa música, mas que não consegue guardar essa beleza em sua vida privada. São universos separados. Isso é muito triste.

Folha - Erika ama Schubert, é sua especialidade. Ela sugere que Walter, sendo belo, não poder interpretar bem Schubert, que era um homem feio. Com isso, o que ela nos diz a respeito de si mesma?
Haneke -
Ela diz que ele, com aquela aparência, nunca foi ferido, nunca sofreu. Para criar arte, é necessário haver sofrido. Ele é muito simplista -porque a beleza pode nos fazer meio burros, a pessoa bonita é mimada, não sabe o que é a dor. E, para poder ter a vontade de criar, é necessário saber. Como ela, com aquela mãe.

Folha- Por que o sr. evita um enfoque explícito ao lidar com desejos íntimos e crus?
Haneke -
Sabe, hoje, se fazemos um filme e mostramos o sexo de alguém, todo mundo se concentra nessa imagem e esquece o resto. Acho uma pena, porque se ignora o filme, os personagens. É um pouco idiota.
Eu quis preservar a obscenidade do romance, mas não quis fazer um filme pornográfico. O obsceno é o que se esconde, também no sentido espiritual. Na pornografia, o sujeito vira um objeto. A obscenidade dá um clique sobre outras coisas. Ela não está só no sexo: está na violência, na vida cotidiana. Se usamos isso na arte, podemos provocar reflexões.
 

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