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20/10/2001 - 03h34

Fernanda Torres flerta com o escândalo na TV

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MARIO SERGIO CONTI
da Folha de S.Paulo, no Rio

Os telespectadores da Globo não terão a oportunidade de contemplar a atriz Fernanda Torres de biquíni de couro preto, chicote em punho, brincando de sadomasoquista em "Os Normais", o seriado levado ao ar nas
noites de sexta-feira.

Tampouco poderão vê-la engolindo às pressas um punhado de comprimidos de anfetamina para enganar policiais que querem revistá-la. O episódio com as duas cenas foi vetado por Mario Lucio Vaz, responsável pelo controle de qualidade da emissora, com a concordância de Guel Arraes, o supervisor de "Os Normais".

Fernanda Torres, 36, não ficou nada abalada com o veto. Está acostumada a flertar com o escândalo. A trabalhar na fronteira do bom com o mau gosto. A transitar entre a grande arte e a indústria cultural. A saltar da vanguarda para o consumo massificado e vice-versa. A transmutar-se de artista em mercadoria e vice-versa.

Ela já foi a mocinha de duas novelas globais dos anos 80, "Brilhante" e "Selva de Pedra", e fez "cunnilingus" com a mãe, Fernanda Montenegro, na peça "The Flash and the Crash Days". Esteve angelical em "Inocência" e satânica em "Gêmeas". Fez publicidade, contracenou com Anthony Hopkins e produziu "A Gaivota", de Tchecov.

Única brasileira a ganhar o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes, com "Eu Sei que Vou te Amar", também foi vaiada com entusiasmo em palcos de Berlim e São Paulo. Esteve sublime em "Eu Sei que Vou te Amar" e constrangedora em "Kuarup".

Com "Os Normais", Fernanda Torres voltou ao horário nobre, expandindo as fronteiras da televisão. O seriado é um "sitcom", tenebroso gênero americano que, com suas risadas enlatadas, parece uma máquina de produzir piadas tolas. "Os Normais" não é uma cópia, é um programa bem
brasileiro", protesta Fernanda Torres.

O seriado, de fato, não tem uma claque de risadas como trilha sonora. Também não tenta sublinhar, com pausas e movimentos de câmara, as situações das quais o telespectador deve rir. Diferentemente das telecomédias americanas, seu tema é o sexo. Mas não o sexo arfante, apelativo e canhestro que é a marca distintiva da teledramaturgia nacional.

Faturamento
Mesmo sendo um produto diverso dos que a televisão costuma apresentar e ousado para os padrões da Globo, "Os Normais" caiu nas graças do público. Levantou a audiência da emissora no horário, tem 18 anunciantes e, graças ao excelente faturamento publicitário, entrou na segunda temporada.

"O programa deve muito a Nanda", diz o criador de "Os Normais", o ator Luiz Fernando Guimarães, 51. "Desde as primeiras conversas sobre o seriado, ficou claro que ela era a atriz ideal para interpretar a Vani."
A direção da Globo cogitou chamar uma atriz contratada para fazer o principal papel feminino de "Os Normais". Desistiu porque Andréa Beltrão tinha outros compromissos e Luiz Fernando Guimarães insistiu.

Fernanda Torres conheceu Luiz Fernando Guimarães na condição de fã do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. "Ela foi muito influenciada pelo Asdrúbal, que desenvolveu um estilo de atuação mais corporal, mais autoconfessional, baseado na experiência e até na inexperiência de seus jovens integrantes", diz Fernanda Montenegro, a "Fernandona".

José Celso Martinez Corrêa expande uma avaliação semelhante. "A Fernandinha é a Fernandona detonada: tem um corpo libertário, trabalha a nudez, se expõe e entra em todas, da macrobiótica à ioga, porque vem de uma geração pós-desbunde", diz. "Ela e a mãe são a mesma entidade, formam uma realeza que está se apurando e refinando, tanto que o filho da Fernandinha vai ser melhor do que ela."

O diretor do Oficina não a viu em "Os Normais". Acha que não está perdendo grande coisa. "A televisão brasileira impede que os atores façam surgir os monstros que existem dentro deles, ela se recusa a permitir interpretações complexas", afirma.

Televisão não é arte, é indústria: na semana passada, durante a gravação de uma cena de "Os Normais" em que Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães travavam um diálogo de 30 segundos, havia 37 pessoas atrás das duas câmeras.

Eram assistentes de direção, contra-regras, iluminadores, cabeleireiras, maquiadoras, sonoplastas, eletricistas, carpinteiros, fotógrafos, operadores de vídeo, técnicos de som, toda uma penca de "et ceteras" sem os quais não se produz nada no Projac, a central de produções da Globo em Jacarepaguá, no Rio. Cada episódio de "Os Normais" custa cerca de R$ 80 mil. De calcinha e sutiã, Fernanda repassou o diálogo 17 vezes.
Parecia não estar nem aí para o portentoso aparato, para o capital que a cercava.

"Gostosíssima"
Zé Celso gostou das atuações de Fernanda no cinema ("ela estava gostosíssima em "Gêmeas", parecia Darlene Glória"), mas sonha vê-la no palco, de preferência na remontagem de "Cacilda!", peça do Oficina. "Ela abrasileirou Gerald Thomas, que vinha cheio de sombras e fumaças da
Europa Central", diz. "Ela comeu, antropofagizou o Gerald."

"Nanda é a melhor atriz da sua geração", diz, por sua vez, Gerald Thomas, 49, com quem Fernanda Torres foi casada durante cinco anos. Ele a dirigiu em "O Império das Meias Verdades", peça na qual ela interpretava o papel de um porco assado numa mesa de banquete. "Durante 40 minutos, Nanda ficava só com a cabeça para fora, e foi o que bastou para levar as platéias de cinco países ao delírio", conta o diretor.

A convivência artística do casal teve episódios de discordância. Gerald Thomas ficou chateado quando ela preferiu atuar no espetáculo "5 X Comédia" e no filme "Terra Estrangeira" em vez de em peças suas. "Não tenho nada contra produções para o grande público, mas achava que os dois trabalhos não acrescentariam nada para Nanda", diz o diretor.

Horror
Para o diretor Walter Salles, em "Terra Estrangeira", Fernanda Torres foi mais do que atriz. "O final do filme é em grande parte criação dela, assim como as melhores cenas de "O Primeiro Dia", diz Walter Salles, que co-dirigiu ambos os filmes com Daniela Thomas.

A crítica de teatro Bárbara Heliodora considera que Fernanda Torres mantém um desempenho de qualidade mais constante no cinema do que no teatro. "Ela estava bem em "Duas Mulheres e um Cadáver", mas a peça era fraca", diz. "Em "A Gaivota", o cenário era um horror, e o texto de Tchecov foi cortado de maneira absurda, de modo que ela mal conseguiu se safar."

As restrições mais agudas a Fernanda vêm de jovens atores de faculdades de teatro cariocas. Nesses meios, onde é comum ganhar a vida interpretando palhaços em festas de aniversário de crianças ricas, ela é vista como uma atriz que descurou da técnica e da busca do novo e da verdade para se acomodar ao sistema do estrelato, à Globo e ao teatro comercial.

Fernanda Torres ouve a crítica com atenção. Discorda, mas a entende. "A carreira de atriz é dura", diz. "Mas é possível sobreviver nela fazendo um trabalho honesto e de boa qualidade."
 

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