Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
31/10/2001 - 08h32

Cantora Ná Ozzetti encarna epifania da música

Publicidade

MARIO SERGIO CONTI
da Folha de S. Paulo, no Rio

Ná Ozzetti cantou para 150 pessoas no Rio de Janeiro, na semana retrasada, no Centro Cultural Banco do Brasil. No mesmo dia, no Aterro do Flamengo, padre Marcelo Rossi se esganiçava para 600 mil espectadores saltitantes. Na noite seguinte, mais 150 pessoas acompanharam seu show, enquanto outras dezenas de milhares escutavam Eric Clapton na Praça da Apoteose.

Mas a apoteose estava na voz de soprano de Ná Ozzetti. Ao cantar "A Olhos Nus", de José Miguel Wisnik, Ná fez nascer redondo o sol. O seu canto abriu um rombo no azul. Abriu um sonho. Abriu um tambor de luz.

A última sílaba do derradeiro verso de "A Olhos Nus" se prolongou durante 12 segundos: "raios de luuuuuuuuuuuuuuuuz" vibrando num clarão átono em dó menor. O óleo cru do canto serpenteou nos labirintos dos corpos dos espectadores, até extravasar pela pele de seus braços em arrepios de pêlos eriçados.

Os gregos diziam que processos como os desencadeados pelo canto de Ná Ozzetti são manifestações místicas ou espirituais. Davam-lhes o nome de epifania. No caso, o suporte da epifania é Maria Cristina Ozzetti, cantora de 42 anos. Ela passou a infância no bairro de Perdizes, em São Paulo, e com quatro anos de idade recebeu o inexplicável apelido de Ná de uma irmã menor. Cresceu numa família musical, de origem italiana. O avô batizou oito filhos com nomes de óperas: Otelo, Carmen, Ernani etc.

Suas primeiras lembranças musicais são, quem diria, de canções de Rita Pavone e dos Beatles. Criança, Ná cantava em festas familiares. Soube na adolescência que sua sina era ser cantora. "Sina não: destino", atalha a artista, atravessando camadas espessas de uma timidez contagiante para fazer a correção.

Com dez anos, Ná quis ter aulas de canto lírico. A professora mandou-a de volta para casa porque era muito pequena. Aprendeu piano aos 17. Um ano depois, frequentava aulas de harmonia. Cogitou estudar música na Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA, mas achou a faculdade demasiado erudita. Estranhamente, entrou na Faap e se formou em artes plásticas.

Se não foi à USP, a USP foi a ela. Ficou amiga de alunos da ECA que integravam o Rumo de Música Popular e, no final dos anos 70, passou a cantar no grupo. A alma do Rumo era Luiz Tatit, influência decisiva na arte de Ná. Professor, violonista, cantor e compositor, Tatit há 20 anos vem publicando livros que, salvo engano, pretendem explicitar os fundamentos da música popular brasileira.

Vício inconfessável

O Rumo se dissolveu em meados dos anos 80. Ná já tateava uma trilha própria. Meio na muda, sobreviveu dando aulas de canto. Foi nessa época que conheceu as canções de José Miguel Wisnik, outra grande influência na sua música.

Como Tatit, Wisnik é um mestre cantor, um livre-docente docemente livre, parceiro sem preconceitos de José Celso Martinez Corrêa e Elza Soares. Professor de literatura brasileira na USP, ele começou a compor como quem tem um vício inconfessável: fazia músicas clandestinamente, sem mostrá-las a ninguém.

A descoberta das canções de Wisnik animou Ná a gravar um CD. Depois outros, sempre em gravadoras pequenas. A maioria de seu repertório era de compositores paulistas: Tatit, Wisnik, Itamar Asumpção, Rita Lee e seu irmão, Dante Ozzetti. Passou também ela a compor. É autora de 30 músicas.

Ná chegou ao grande público no ano passado. Ganhou o prêmio de melhor intérprete do Festival de Música Popular da Globo. No mês passado, uma gravadora de porte, a Som Livre, lançou o seu CD "Show", com canções clássicas como "Adeus Batucada", "Último Desejo" e "Meu Mundo Caiu".

Qual o lugar de Ná Ozzetti na música brasileira? "Ela é a melhor cantora da sua geração", responde o maestro, arranjador e violoncelista Jaques Morelenbaum, 47.

"A Ná é arrojada e afinada", opina José Miguel Wisnik, 49. "Ela está na sua melhor fase", responde o escritor e produtor musical Zuza Homem de Mello, 68, autor de "João Gilberto", da série Folha Explica.

Indústria

Por que, então, seu penúltimo disco vendeu 20 mil cópias (do último ainda não há números)?

"Ná canta para um público culto, que a indústria da música não tem muito interesse em alcançar", diz Morelenbaum.

"A indústria e o público identificam as cantoras pelo gênero que cantam, e a Ná percorre vários gêneros, modificando-os e revigorando-os", diz Wisnik.

Ele detecta outro problema, extra-indústria. "A imprensa brasileira está tomada por um certo dandismo: ela costuma malhar todos os músicos que têm sucesso, e a fazer restrições aos que buscam um caminho criativo, acusando-os, veja o paradoxo, de não conseguirem sucesso", diz. "É rara uma crítica como a que Arthur Nestrovski fez do show da Ná no Baretto, na Folha, quando ele disse que a voz dela era uma beleza em si mesma."

Zuza Homem de Mello folheia a última edição da revista "Sucessos CD", que traz a lista das cantoras mais vendidas: "Sabe qual é a cantora que vende mais? É Vanessa Camargo, já ouviu falar? Nem eu. Depois vêm Angélica, Adriana, Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Ana Carolina e Sandra Porto".

Indignando-se, Zuza prossegue: "Essas mulheres não cantam, elas rebolam. Vi um show da Daniela Mercury e quis ir embora logo na primeira nota que ela cantou. Era a primeira, e ela errou. A Ná é outra coisa: não dá pulinhos, não fica com as pernas de fora no palco nem usa decotão. Seu lugar é o limbo onde foi confinada a música popular brasileira de qualidade".
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página