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17/11/2001 - 03h52

Jean-Christophe Rufin retrata guerra de religiões no Brasil

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ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

Em 1555, o cavalheiro francês Nicolas Durand de Villegagnon embarca, com três navios, rumo às terras recém-descobertas do Brasil. Segue com o objetivo de fundar no país uma França Antártica. Aporta na baía de Guanabara, vazia de portugueses e repleta de índios, e se estabelece numa ilha (hoje, do Governador), onde fica até 1560, quando o português Mem de Sá ocupa a região.

Para os brasileiros, o episódio é o marco da fundação do Rio de Janeiro, por Estácio de Sá. Para os franceses, ele estará de agora em diante ligado ao romance de aventuras e polêmica religiosa "Rouge Brésil", do escritor Jean-Christophe Rufin, que ganhou neste mês o prêmio literário mais importante do país, o tradicional Goncourt.

Rufin, 49, viveu em Recife dois anos, de 1989 a 1990, como adido cultural do Consulado Geral da França no Nordeste. Foi um dos pioneiros da organização humanitária Médicos sem Fronteiras. É autor de "O Abissínio", lançado pela Record. Já recebeu várias propostas de editoras brasileiras para publicar "Rouge Brésil".

Best-seller desde o seu lançamento, em setembro, o livro esgotou nos últimos dias em várias livrarias de Paris. O Goncourt fez uma opção que contrariou boa parte da crítica, mas agradou aos leitores: o livro de Rufin é essencialmente convencional, mas fascinante, pelo quadro histórico, pelos dispositivos mitológicos e pela narrativa folhetinesca, que lembram os clássicos juvenis.

São 551 páginas que se lê de uma vez, em que a pesquisa histórica exaustiva feita pelo autor se mescla às imaginativas aventuras de dois adolescentes, Just e Colombe, que são levados na expedição para aprenderem o idioma indígena e servirem de intérpretes para os franceses. A viagem para eles é também a busca pelo pai, cujo paradeiro perderam, e a passagem para a vida adulta.

O nome do livro, "Vermelho Brasil", vem da cor da tinta extraída do pau-brasil e serve de imagem aos conflitos que expõe: entre portugueses e franceses, católicos e protestantes, Reforma e Contra-Reforma, europeus e indígenas, fanatismo e assimilação.

O livro reconta como calvinistas foram convidados a colonizar o país pelo católico Villegagnon, que sonha com um mundo de tolerância religiosa. O conflito, porém, estoura entre eles, trazendo a guerra de religiões que se travava na Europa para as costas do Brasil. "Consigo imaginar um Brasil que fosse francês, mas não um Brasil que tivesse se tornado calvinista", diz Rufin na entrevista a seguir, feita na sede de sua editora francesa, a Gallimard.

Folha - O canibalismo tem um papel importante no livro. Por um lado, ele faz parte da cultura indígena. Por outro, ele é associado pelos puritanos à prática católica da transubstanciação de Cristo na hóstia. A partir dessa sua idéia romanesca, o sr. acredita que há uma relação mais forte da cultura antropofágica com o catolicismo do que com o protestantismo?
Rufin -
(ri) Para responder, é preciso talvez fazer uma relação com o Brasil contemporâneo. O Brasil moderno é ao mesmo tempo católico na sua prática e antropofágico. Ele guardou essa capacidade de digerir as culturas. E o próprio catolicismo brasileiro é um pouco antropofágico, na sua capacidade de absorver enormemente crenças diferentes. Isso sem falar do candomblé. Se você compara com os Estados Unidos, a integração lá foi feita de maneira muito mais seca. Em geral, em todas as colônias antigas inglesas houve uma distância muito forte entre os brancos e os outros.

Folha - Os portugueses parecem caricaturas no livro, mas foram eles que fizeram a colonização. O que faltou aos franceses para obterem a vitória no território brasileiro?
Rufin -
O que eu queria mostrar é que os portugueses não ganharam essa guerra contra os franceses. Eles ocuparam uma terra que os franceses, que estavam divididos, não souberam manter. Não foi uma vitória portuguesa, nisso eu insisto, embora não seja a Copa do Mundo. Mas talvez tenha sido uma vitória moral, na medida em que os jesuítas e os portugueses eram portadores de uma mensagem muito forte, unitária e brutal também, que era a do Concílio de Trento, da ideologia estável da Contra-Reforma.

Folha - É surpreendente como o sr. se alonga num debate entre calvinistas e católicos diante da selva brasileira. Mesmo no nível do mito, este é um tema crucial para o país se se pensa nas teses de Max Weber. O sr. acha que devemos deplorar que os puritanos não tenham se instalado no Brasil?
Rufin -
Isso depende. No plano econômico, talvez... Eu posso imaginar um Brasil francês, mas não consigo imaginar um Brasil calvinista, não sei por quê. Acho que havia uma verdadeira incompatibilidade entre a prática dos calvinistas e os indígenas. Alguns dizem que os calvinistas tinham um respeito muito acentuado pelos índios. De fato, quando lemos Jean de Léry, nos damos conta de que ele não os considerava capazes de serem convertidos, que eram muito primitivos para ascender à palavra de Deus. Dito de outra forma, ele os considerava como animais, e é por isso que ele os respeitava e os observava com tanto cuidado. Penso que os calvinistas eram muito distantes dos índios e que os católicos puderam de alguma forma fazer uma síntese.

Folha - Villegagnon diz no romance: "Não se pode servir Deus a não ser pela força". O que o seu romance tem a dizer a respeito de nossa atualidade?
Rufin -
O livro foi escrito, claro, antes dos atentados, mas é um romance sobre o fanatismo, sobre a sua mecânica. Temos ali duas formas do mesmo monoteísmo, católico e protestante. O livro mostra que, embora estas sejam hoje religiões sobretudo tranquilas e pacíficas, nelas existiu e existe o espírito da intolerância, do fanatismo e do assassinato. É interessante isso no livro, pois hoje podemos ser levados a crer que o fanatismo é próprio de uma religião particular, o islamismo, quando na verdade ele aparece em todas as fés monoteístas.


ROUGE BRÉSIL
Autor:
Jean-Christophe Rufin
Editora: Gallimard
Quanto: 137,75 francos (551 págs.).
 

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