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20/12/2001 - 03h55

Jovens da periferia estréiam no cinema em "Cidade de Deus"

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SILVANA ARANTES
enviada especial ao Rio

O estudante Leandro Firmino da Hora, 23, sonhava em ser oficial do Exército. O artista plástico Matheus Nachtergaele, 32, nunca havia pensado em se tornar ator.

Este ano, durante quase 70 dias, ambos duelaram no set de filmagens de "Cidade de Deus", longa-metragem inédito de Fernando Meirelles e Kátia Lund, filme de estréia do primeiro, 14º título na carreira do segundo.

Da Hora interpreta Zé Pequeno, Nachtergaele é Sandro Cenoura, chefões do tráfico nos anos 70 que tiveram suas biografias desenhadas pelo escritor Paulo Lins, em cujo livro o filme se baseia e do qual toma o nome emprestado.

O cinema alcançou Leandro da Hora por acaso. Nascido e criado na periferia carioca da Cidade de Deus, achou que não tinha nada a perder se fizesse os testes para participar do longa a ser rodado no local. Era agosto de 99, e corria pelos cantos da Cidade a notícia de que a produção do filme engajaria 200 atores negros no projeto.

Muitos dos selecionados -entre 2.000 cadastrados- foram submetidos a sucessivos testes. No caso de Da Hora um só bastou. Embora tenha papel protagônico, ele não se considera peça de grande importância no filme.

"Todo mundo participou. Eu não fiz mais do que os outros", diz. Tampouco arquiteta planos para a continuidade da carreira, embora desconfie que haverá muito barulho em torno desse filme. "O futuro a Deus pertence", abrevia a conversa.

Ofício
Um dos poucos atores profissionais convidados para o longa, Matheus Nachtergaele recusa o rótulo e, neste caso, dispensou os métodos tradicionais de preparação para as filmagens. "Antes de tudo, acho que ser ator é um ofício, não uma profissão. Em "Cidade de Deus", como os meninos não liam o roteiro, decidi também não lê-lo, para não me inserir de uma forma diferente no projeto."

Os atores garimpados nas comunidades de periferia frequentaram uma oficina de preparação, pela qual foram apresentados aos conceitos básicos de interpretação e técnica cinematográfica.

Ainda hoje, encerradas as filmagens, professores particulares repõem o conteúdo das aulas que os garotos perderam enquanto rodavam "Cidade de Deus". Aos sábados, membros da equipe revezavam-se na condução de encontros sobre cinema que seguem o formato de palestras, excetuados seus aspectos formais.

No último dia 8 foi a vez de Nachtergaele rever os colegas de elenco. O ator contou como o ofício de interpretar invadiu sua vida pelo palco do CPT (Centro de Pesquisas Teatrais), em São Paulo. Ele estava lá atendendo ao pedido de uma amiga para servir de "replicante" num teste de seleção.

O diretor Antunes Filho intimou-o a inscrever-se no curso. A primeira vez em que Nachtergaele se sentiu atuando, no entanto, não foi nem sobre um palco nem nos hospitais e igrejas que o consagraram com as encenações do Teatro da Vertigem ("Paraíso Perdido", "O Livro de Jó").

Candomblé
O ator contou a um grupo de aproximadamente 30 adolescentes como, tendo ido a uma cerimônia de candomblé apenas para assistir, foi chamado ao centro da "cena". Diante de uma "entidade" que dançava, cantava, falava e aspergia o sangue de uma galinha recém-abatida em torno dele, Nachtergaele chorou sem saber por quê. "Eu não sabia mais se aquilo era verdade ou não, mas tinha certeza de que era importante." O que é, enfim, uma síntese da teatralidade, na opinião do ator.

Muito antes de fazer "14 filmes em cinco ou seis anos", Nachtergaele já via um quê de cinematográfica em sua atuação com o Teatro da Vertigem. "Não havia palco, encenávamos em hospitais e igrejas e ficávamos no meio do público. Isso quer dizer que a minha interpretação tinha de ser verdadeira para quem estava há dois passos de mim e para quem me via do fundo da sala", disse.

A "experiência" não foi o bastante para evitar um sentimento fóbico em seu primeiro dia de filmagens, como o ativista político Jonas de "O Que É Isso, Companheiro?" (1997, Bruno Barreto). "Eu ouvia o barulhinho da câmera e ficava em pânico. Pensava: quanto será que custa isso aqui? Se eu errar, o que vai acontecer?"

Fama
A platéia de novos atores que aguarda ansiosa sua estréia nas telas ouvia Nachtergaele e lhe fazia perguntas sobre os segredos da boa atuação e os desdobramentos da notoriedade.

"Acreditar" foi a receita para a primeira das inquietações. Sobre a segunda curiosidade, Nachtergaele preferiu citar uma frase que ouviu de Fernanda Montenegro quando filmava "O Auto da Compadecida", de Guel Arraes: "Prepare-se: agora é a fama e o cortejo de horrores".

Depois de "Cidade de Deus", que tem estréia prevista para março ou abril de 2002, o ator adere ao "Carandiru", de Hector Babenco, e ao "Eclipse Solar", de Herbert Brödl, que será filmado na Amazônia e na Áustria. Já Leandro da Hora pretende deixar que a vida o leve. Até o próximo set ou, quem sabe, um quartel.
 

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