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31/03/2002 - 16h48

"Reality show" muda relações ao aproximar-se da classe média

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IVANA BENTES
especial para a Folha

A televisão vem monitorando e promovendo mudanças sociais significativas. Reflete um certo estado das coisas, cria um senso comum público e se lança num visível esforço para antecipar futuros. Não é ilegítimo perguntar, olhando a TV brasileira pelo avesso, que tipo de cultura essa televisão reflete e prefigura.

Estamos assistindo a uma reconfiguração do campo televisivo com a convergência entre TV e internet, a entrada de capital estrangeiro no negócio e a busca incessante por novos formatos. Acontecimentos mundiais transmitidos ao vivo, jogos e "reality shows", zoológicos e laboratórios humanos interativos que devassam a intimidade são alguns desses novos campos de batalha.

Um outro dado relevante nesse quadro. A oferta global de informações supera num nível estupidamente grande a capacidade humana de consumo, seja em livros, na internet ou na TV. Logo a "nossa atenção tem que ser comprada" (1), e nunca houve tanta disputa por ela, pois como assegurar que vamos consumir ao menos uma parte de tudo isso que é produzido?

Como fidelizar, fazer voltar, criar pactos de consumo e audiência? A "interação", por mais pífia que seja, é uma dessas tentativas de capturar nossa atenção. Os programas de "convivência", como o "Big Brother Brasil", "Casa dos Artistas" e todos os programas que trabalham com a comercialização da intimidade e criam vínculos entre um grupo de participantes e telespectadores "atuantes", são outra resposta a isso.

Jogos de convivência

Ligar indivíduos, com suas necessidades pessoais, a espaços públicos e "mentes coletivas" é um desejo utópico que a televisão vem concretizando de forma duvidosa ao transformar essa "mente coletiva", espaço altamente valorizado, num confessionário das intimidades mais irrelevantes.

Continuidade e extensão entre o tempo da vida, o tempo do trabalho e o tempo do lazer -que são a característica do capitalismo pós-industrial (2). As máquinas que servem à produção (computador, telefone, celular, TV, internet) são máquinas lúdicas, que estreitam a convivência e servem ao lazer. A TV aposta nos jogos de convivência como simulações de uma certa vida social, lugar de fidelização, lealdades, criação de vínculos, um formato em expansão em todos os canais e que faz sucesso.

Na busca de criar fatos midiáticos continuamente, capturar nossa atenção e comprar nosso tempo, a televisão convoca o próprio espectador ou usuário a participar do processo de produção da informação. Ele é o consumidor-produtor que Walter Benjamin anteviu nos leitores que escreviam para os jornais e que hoje recebem câmeras de vídeo para produzir imagens que vão entrar no telejornal, no programa de variedades, numa denúncia política ou no "álbum" eletrônico pessoal. As tecnologias doméstico-industriais transformam cada um de nós em unidades móveis de produção de imagens e informação que alimentam o sistema de comunicação.

O capitalismo midiático é produtor e tem que gerir bens altamente perecíveis, a informação, a notícia, bens simbólicos e imateriais, que colocam a televisão no eterno presente das medições de audiência e na guerra contínua pela nossa atenção.

Instabilidade e oscilações que produzem mudanças significativas nas fórmulas consagradas de fazer TV. Essa mobilidade sobre o "ao vivo", de olho nos índices, faz de cada edição do "Big Brother Brasil", do "Fantástico", do "Faustão", do "Ratinho" ou da "Casa dos Artistas" um exercício de mútua vigilância cada vez mais esquizofrênico e endógeno, em que o campo televisivo e suas exigências comerciais se sobrepõem a todo princípio.

Ratinho comemora ao vivo a subida de pontos no Ibope com gritos, música e aplausos da platéia. Estar na frente da Globo vira show, com direito a comoção popular. Alegria de ser platéia e telespectador no evento campeão de audiência que é uma satisfação em si, numa demonstração incontornável de como a televisão atua, mais do que tudo, como espaço comum, lugar de "estar junto", inserido numa realidade coletiva, partilhada, festiva e "tribal" (Michel Maffesoli), independentemente de qualquer conteúdo. Talvez esteja aí um germe de "aprendizado" torto da audiência e do seu poder.

Autofagia -o canibalismo dos fracos- é a aposta da TV que se desdobra em metaprogramas sobre a própria televisão: "Vídeo Show", "TV Fama", coberturas em abismo da vida televisiva que é repercutida ao infinito. Tudo pode ser reciclado, inclusive a pauta do concorrente. Paradoxo que faz com que a concorrência vigilante na TV aberta e na mídia em geral produza mais uniformidade e redundância do que originalidade (3).

Gênese das celebridades

Entre as poucas demandas da audiência, medidas em pesquisas e divulgadas pelas próprias emissoras, ver pessoas comuns e anônimas na TV é um "desejo" difuso. E não seria exagerado prever que essa forma de "existência" propriamente televisiva torne-se um "direito", uma exigência do próprio telespectador que, em última instância, quer se ver. A TV se antecipa à obrigação e dá vazão e escape a esse desejo com seus concursos, shows de calouros, espectadores "reversíveis" que se tornam "top models", atores, repórteres por um dia ou o povo que fala, se confessa, pede auxílio, sofre em público, expõe suas virtudes e sua miséria existencial.

Mais do que isso, ao catapultar "anônimos" para o estrelato e o circuito midiático, "reality shows" como "Big Brother" e "Casa dos Artistas" revelam a própria gênese das celebridades televisivas. Uma nova vida que virá depois do capital midiático acumulado durante a exposição às câmeras. A existência pós-mídia dos participantes do "Big Brother" é o assunto mais recorrente entre eles, exercício de tédio televisivo, em que tentam antecipar seu futuro, depois dessa capitalização.

Trata-se de uma reconfiguração das relações sociais mediadas por imagens/informação. É interessante observar os novos tipos sociais que surgem e são legitimados nesses programas. Não mais o machão, o "corno", o "efeminado", a "gostosa", a "virgem", o "tarado sexual" de "A Praça É Nossa", "Ratinho", "Linha Direta" ou "Zorra Total", que ainda regem certo imaginário popular rural.

Os novos tipos (notadamente no programa da Globo) fazem parte de um imaginário mais próximo da classe média urbana: a empresária paulista, o artista plástico, a designer, o cabeleireiro chique, o dançarino de axé, a modelo-manequim, a socialite, as subcelebridades, crias da própria mídia, a ninfomaníaca, o rapper irado, os marombeiros com visual estilizado de meninos de rua, cara de mau e gorro enterrado na cabeça.

Democratismo difuso

Exibidos num espaço público privilegiado e de atenção máxima, todos podem falar sobre tudo, pois a "notoriedade", dada pela TV mais do que por seus pares, torna-se a base da "autoridade" instantânea adquirida pela visibilidade máxima. Uma hipertrofia do campo do privado e da intimidade, supervalorização do indivíduo, que coloca a confissão no centro da ágora, no espaço público nacional mais caro e disputado.

A televisão realiza assim o cruzamento do panoptismo com o confessionário, como pensados por Foucault e Deleuze (4), para caracterizar as sociedades disciplinares e de controle: "Confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos; confessam-se passado e sonhos; confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama, a si próprios (...)".

Tudo se confessa diante das câmeras e na TV. E tanto a confissão quanto a vigilância se tornam entretenimento, espetáculo (5) e frequentemente tédio. Ter acesso às confissões, vigiar os comportamentos, julgar e excluir por voto anônimo é a base de um democratismo difuso e socialmente inoperante, pois nunca decide nada de importante.

Telespectadores do mundo, uni-vos!

Mesmo parados diante da TV estamos trabalhando para a audiência. Seria então o telespectador revoltado e mobilizado a nova classe revolucionária no capitalismo midiático e imaterial? "Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois, nunca age: assim deve ser o bom espectador", descarta Guy Debord. Néstor García Canclini vai mais fundo, provoca e rompe com a maneira tradicional de pensar o consumo e os hábitos televisivos como mal irremediável, propondo sua politização: "Faltam movimentos de consumidores, de telespectadores" (6) que pudessem exigir, opinar, protestar e pressionar. Algo que o anonimato e a impessoalidade da audiência não estimulam.

É sintomático que os movimentos de boicote à TV, raros, que vêm surgindo, no estilo "não ligue a TV no dia X", ainda tenham como modelo a velha greve; a novidade é que passam pela internet e estão ligados à vocação hiperativista dos internautas que formam redes e comunidades de pressão e ação em oposição a décadas de "silêncio" dos telespectadores. "Redes da multidão" (Antonio Negri) em que o telespectador reconhecesse a televisão como um bem público e fizesse uso desse bem. A idéia -tanto de Canclini quanto de Negri- está na contramão do lugar-comum de "irracionalidade" e "passividade" no consumo.

A televisão, regulada pela publicidade, tenta se legitimar numa abstração, a audiência. Mas nada da complexidade, diversidade, singularidade da multidão de telespectadores passa nessas medições quantitativas, "blitz extemporânea da vontade coletiva", diria Negri. Resta saber como tomar posse da TV e fazer uma "guerrilha de sofá".

Notas
1. Cristian Marazzi sobre a "attencion economy", in "As Multidões e o Império - Entre Globalização da Guerra e Universalização dos Direitos" (DP&A Editora);
2. Antonio Negri. "O Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade" (DP&A Editora);
3. Pierre Bourdieu. "Sobre a Televisão" (Jorge Zahar Editor);
4. Gilles Deleuze. "Pos-Scriptum sobre a Sociedade de Controle", in "Conversações" (editora 34);
5. Arlindo Machado. "Máquina e Imaginário" (Edusp);
6. Néstor García Canclini. "Dicionário para Consumidores Descontentes", no Mais! de 27/1/2002.

Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, organizadora de "Cartas ao Mundo" (Companhia das Letras) e autora de "Joaquim Pedro de Andrade" (ed. Relume-Dumará).


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