Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
31/03/2002 - 16h55

TV clona formato da internet ao escancarar a intimidade

Publicidade

CIRO MARCONDES FILHO
especial para a Folha

"Big Brother" é o primeiro programa genuinamente mundial de televisão. Criado na Holanda pela firma Endemol, foi rapidamente vendido a 25 países que adotaram sua fórmula básica e ganharam minas de ouro com ele. Nem os resultados das transmissões de finais de campeonatos de futebol nem os festivais de cinema nem os shows de grande audiência bateram-lhe o sucesso. Na França virou "um verdadeiro assunto de Estado".

A fórmula do programa é banal ("volta ao básico") e, sem dúvida, não está aí a razão de seu sucesso. Os heróis devem ser pessoas "normais" (o que não foi bem o caso na TV Globo), não representar nenhum papel nem encenar emoções: tudo muito real. O total isolamento dos participantes e a impossibilidade de não ser observado devem, na concepção original do programa, traduzir sentimentos verdadeiros: não dá para adiar nem para recalcar emoções ou indisposições com os companheiros de cela. O curioso é que o atrativo não está no sexo nem na nudez, mas nas conversas; são estas que prendem o telespectador nessa encenação do cotidiano, que, via de regra, é muito chato.

A idéia de "Big Brother" amadureceu nos últimos anos. Seu precursor mais direto são as webcams, pequenas câmeras acopladas no computador que emitem imagens diretamente dos domicílios via internet para qualquer um. Mas "Big Brother" supera essas iniciativas pontuais ou precárias e cria um pacote em que a invasão da intimidade do outro se acopla a um sistema técnico sofisticado, acrescentando regras de concorrência e exclusão e receitas banais de televisão. O intrigante é que o formato emplacou bem e surpreendeu até os mais céticos. Algo mudou na vida das pessoas nestes tempos de novo século.

Processo cultural

A crítica clássica ao programa fala de desprezo humano, de pessoas fracas das idéias, de pornô social; outros fazem uma salada de voyeurismo, exibicionismo, vigilância e submissão. Sucesso do sórdido, histórias de amor desenvolvidas in vitro, fase canibal da cultura de massa, isso e aquilo. Mas perde, com essa verborragia toda, a dimensão do que está de fato acontecendo. E isso não é pouco. Como pode uma emissão tão cansativa ("Big Brother Brasil" só não consegue ser mais chato e insuportável que "Casa dos Artistas 2"), que não tem muito de "vida verdadeira", chegar tão longe? Não há de ser somente estímulo endógeno, ou seja, por força da própria presença e publicidade da televisão (se bem que isso o ajude a alavancar audiência). É preciso uma perspectiva um pouco mais ampla.

A internet não surgiu do nada. Ela já desbancou a televisão, assim como o cinema, no começo da hegemonia da TV, ficou reduzido a seu quintal de produção de séries semanais. Um meio devora o outro, já dizia Victor Hugo, e não há como escapar: a selva tecnológica não tem clemência, e dessa vez a TV foi canibalizada e seu futuro não será melhor do que o de seus antecessores: uma vivência marginal no cenário do entretenimento.

Mas, para captar o sentido atual das transformações, é preciso pegar ainda mais fundo: o da mudança das sensibilidades que provocou o fenômeno atual da corrosão das intimidades. De cento e poucos anos para cá estamos assistindo a um processo cultural interessante: o cinema, quando surgiu, ocupou o espaço das festas e quermesses populares, condensando numa tela o universo possível do prazer e do sonho.

Em meados dos anos 50, a televisão recolheu as pessoas das ruas e levou esse mesmo cinema para dentro das casas, acrescentando informação, esporte, humor etc. Hoje a internet avança mais nesse trabalho, trazendo bancos, bibliotecas, órgãos públicos, todo um universo para o interior dos domicílios. Algo está se passando: o mundo, a vida, está deixando as ruas e se condensando cada vez mais nas telas. A realidade externa está evaporando.

Mas acontece ainda outro fenômeno. No passado, as pessoas possuíam vida social e comunitária, mas havia um forte controle da religião. O ascetismo, a moral, a pressão do grupo impediam (e criminalizavam) dissidências. Mas esse poder foi se dissolvendo. Hoje ninguém mais leva muito a sério a religião, as tecnologias ocuparam seu lugar. O controle da vida e dos passos das pessoas séculos atrás era ao mesmo tempo opressor e tranquilizante, ninguém precisava decidir muita coisa, já estava tudo pronto. Com as novas tecnologias -a "nova metafísica"- todos ficaram livres e, ao mesmo tempo, um pouco baratas tontas, sem rumo, sem direção. "Big Brother" recoloca algumas coisas no lugar e restitui aos telespectadores o sentimento de onipotência diante de personagens frágeis, fáceis de ler (na Alemanha, o vitorioso da série 2 foi Zlatko, um rapaz tipo proletário, sem leitura ou formação, incapaz de elaborar uma frase inteira. Ele sugeria autenticidade. A emissora aprendeu com ele a substituir as meninas bonitas e os ideais de beleza por formas mais rudes, como a de Sabrina, ou um pouco idiotizadas, como Verena).

Além do mais, reinventa o sentido de comunidade entre os fãs de "Big Brother". Os fuxicos, as especulações, os boatos se tornam -e isso é notável- mais interessantes que a própria série.

Pulsão de se mostrar

O incrível é que o formato capturou outra mudança de atitude: as pessoas não desejam mais tanto ver, como no voyeurismo; hoje elas precisam mais ser vistas. A fantasia de ser o objeto do sonho de outra pessoa é bem mais forte. Por isso o reforço à pulsão de se mostrar. A tragédia do mundo atual é não ser observado. Homens e mulheres necessitam mais do que nunca do olhar da câmera para provar sua existência.

Por isso de nada adianta discutir o conteúdo na série. Críticas teóricas, análises de conteúdo, tudo inútil. O segredo está na superfície. Nessa pulsão do se mostrar, do abrir sua intimidade ao outro, que a internet hoje multiplica infinitamente, a intimidade exposta parece ser hoje a resposta ao vazio criado pelo desaparecimento das crenças e das religiões e pelo branco total que vem junto com a cultura tecnológica.

O íntimo outrora era o segredo de cada um, seu "tesouro". Havia boa demanda para isso, as pessoas se marcavam pelo seu mistério. Era a alma do romantismo. Hoje, com a massificação e a impessoalização, terminou a demanda do íntimo, seu preço de mercado despencou. As pessoas entregam-no facilmente. A miséria se desmaterializou, chegou ao espírito. Diários íntimos multiplicam-se na internet, pessoas expõem seus pensamentos mais interiores, seus sentimentos mais escondidos.

É a era da TV "trash", em que platéias deliram com confidências escandalosas, com criminosos detalhando seus crimes hediondos, com revelações inacreditáveis da vida privada. E na fila há mais 4.000 ou 5.000 pessoas, a cada semana, esperando a sua vez de falar. No programa "Jerry Springer" ["talk show" da TV americana", uma mulher, em meio a revelações de prostituição e incesto, com respectivos parentes presentes, assassinou a ex-mulher do marido, fato assistido por 8 milhões de telespectadores extasiados.

É o efeito internet. A facilidade de exposição, aliada a uma alta sensação de insignificância (não há mais Deus, nenhum valor é mais alto que a própria prova de existência), escancarou as comportas da subjetividade. Vale provar que, se existe a qualquer preço, é porque ninguém está mais aí para comprová-lo.

Mostrar-se na tela

Mostrar-se, mas principalmente mostrar-se na tela, já que o outro mundo dissolveu-se no ar, torna-se a meta mais alta e a única.

A internet incorporou a televisão e esvaziou seus conteúdos, deixou-nos essa aridez da transparência técnica. Já assistimos a isso no passado. A era da alta política grega, com seus debates e suas questões do cidadão e da participação, cedeu lugar, no helenismo, a um materialismo frívolo, centrado no indivíduo, meramente pragmático, indiferente a tudo e a todos. Sinais de declínio. Na época, emergiu disso um cristianismo ascético, marcado pela culpa, o ressentimento, a não-vida. Hoje a religião é a tela, e dessa metafísica não se pode esperar uma salvação do niilista perdido; quando muito, o retorno do recalcado a reivindicar um pouco de vida nesta morte branda e indolor.

Ciro Marcondes Filho é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP e autor de, entre outros, "Comunicação e Jornalismo" (Hacker Editores) e "Quem Manipula Quem" (Vozes).

Leia mais:

  • "Reality show" não desrespeita privacidade, mas a retrata sem ideais

  • "Reality show" muda relações ao aproximar-se da classe média

  • Com programas interativos, TV recupera conceito de cidadania



  • Leia mais notícias sobre "Casa dos Artistas"


    Leia mais notícias sobre o "Big Brother"
     

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página