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01/06/2002 - 03h10

Chartier revela curiosidades e mudanças na leitura

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MARCELO COELHO
da Folha de S.Paulo

Os ensaios que Roger Chartier reúne em "Os Desafios da Escrita" são ao mesmo tempo interessantes e vagos.

Especialista em história da leitura, Chartier tem coisas muito curiosas a contar sobre, por exemplo, a produção de livros baratos na França do século 18 -e de que modo uma série de estratégias para facilitar a leitura dos clássicos, como cortes, resumos, supressões, terminava tornando-os mais obscuros do que eram originalmente.

Ou sobre as mudanças de pontuação nos textos de peças teatrais -e como foi sendo construída, por atores, editores, revisores etc., parte do significado das obras de Shakespeare e Molière.

Há também um ensaio erudito sobre o funcionamento de uma tipografia espanhola no século 17 -e as lutas de Cervantes contra os imitadores de seu "Dom Quixote". Chartier aponta que, depois do sucesso do primeiro volume do livro, houve quem escrevesse continuações apócrifas das aventuras do cavaleiro andante. Na segunda parte de "Dom Quixote", escrita anos depois, Cervantes faz seu personagem desautorizar essas imitações e mesmo corrigir alguns erros do texto.

Um dos assuntos prediletos de Chartier é o das transformações que a própria forma material do livro -volume encadernado, rolo de papel, folheto, e-book- pode exercer sobre a prática da leitura.

Hábitos hoje corriqueiros como sublinhar uma frase, ou escrever anotações à margem da página, são resultado de uma longa história e provavelmente não têm como resistir ao advento dos meios eletrônicos de publicação.

Mais significativo do que isso, o conceito mesmo do que seja "livro" e "autor" não é algo imutável no tempo. A idéia do livro como objeto fixo, impossível de ser modificado e alterado pelas pessoas que o manuseiam, talvez não sobreviva incólume à nova realidade tecnológica.

Afinal, como diz Chartier, o leitor diante de uma tela se envolve numa atividade de leitura geralmente descontínua, buscando "a partir de palavras-chave ou rubricas temáticas o fragmento textual do qual quer se apoderar (um artigo em um periódico, uma informação em um website), sem que necessariamente seja percebida a identidade e a coerência da totalidade textual que contém esse elemento".

É nesse ponto, contudo, que vamos entrando nas partes mais vagas do livro. Claro que especulações sobre o futuro da escrita e da leitura são muito arriscadas, e é melhor apresentar algumas idéias genéricas do que decretar "o fim" ou "o começo" disto e daquilo.

Exatamente por ser um historiador minucioso, capaz de interessar-se sobre as origens da perícia grafológica ou dos métodos de taquigrafia, ele não prolonga muito os questionamentos teóricos que parece ter sido solicitado a fazer.
Os ensaios, quando abandonam o âmbito das realidades específicas, parecem então constituir-se mais num programa de pesquisa: repetem várias vezes a idéia de que a apresentação material do livro altera seu conteúdo e sua recepção pelo leitor, recorrendo não raro aos mesmos exemplos. Entre o texto inicial de "Os Desafios da Escrita", intitulado "Línguas e Leituras no Mundo Digital", e o último ensaio, "Morte ou Transfiguração do Leitor?", há muita coisa repetida.

Mas é justamente a noção de repetição que vai sendo posta em xeque por Chartier.

A idéia de que um "mesmo" texto sobreviva a toda a série de variações tipográficas e editoriais a que foi submetido -para não falar das traduções, resumos, paráfrases, citações- é questionada por Chartier, que tem sempre à mão algum trecho de Jorge Luis Borges para apimentar seus ensaios.

O mundo das imaginações borgianas -como a idéia de uma biblioteca infinita ou o famoso "Dom Quixote" escrito por Pierre Menard- é mais do que um manancial de exemplos para Chartier; constitui um fundamento básico, quase que um artigo de fé, para suas pesquisas.

Nenhum tema mais borgiano, certamente, do que a história da leitura, os labirintos do sentido e as relatividades da tipografia. Mas o que, no autor argentino, era uma ironia contra a sistematização teórica e elogio às inutilidades e prazeres da literatura vai adquirindo ultimamente o estatuto de verdadeiro axioma metodológico.

Isso funciona bem quando estamos diante da pura pesquisa historiográfica, mas parece um tanto insatisfatório quando se trata de fazer considerações mais genéricas ou teóricas.

Uma teoria do detalhismo, a generalização do pormenor, a universalização da "diferença", a indiscriminação do relativo -há todo um estilo intelectual que deve muito a Borges e que ultrapassa largamente o terreno de pesquisadores eruditos e interessantes como Chartier.

Não seria inadequado lembrar que esse estilo é fruto de uma conjuntura histórica determinada e transitória.

OS DESAFIOS DA ESCRITA. Autor: Roger Chartier. Tradutora: Fulvia M. L. Moretto. Editora: Unesp. Quanto: R$ 22 (144 págs.).

 

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