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06/06/2002 - 03h55

Humorista solta seus monstros no teatro

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VALMIR SANTOS
da Folha de S.Paulo

Na tela protetora do computador, surge o personagem The Spirit, cidadão instigado dos quadrinhos de Will Eisner. Na parede, um "auto-retrato" caricatural em que posa de Super-Homem demasiado comum, sentado ao sofá, lendo jornal, chinelos aos pés. No mesmo quadro, o niilismo de Nietzsche espia a tudo.

Jô Soares parece bem protegido para sua próxima aventura: "A Noite em que Mary Shelley se Encontrou com Charlotte Brontë e Frankenstein, com Jane Eyre".

Ele espichou as respectivas criaturas no título original de Eduardo Manet, com quem teve a oportunidade de se encontrar em Paris, no mês passado.

Por meio do cineasta e amigo Jean-Claude Carrière, Jô chegou a Manet, autor até então desconhecido nos palcos brasileiros. Entrevistou-o (e riu muito) para o projeto de montagem.

Como jornalista e ator, o cubano Manet permaneceu exilado entre 1951 e 1959, durante a ditadura em seu país. Nesse período, estudou na Europa. Retornou após a revolução socialista de Fidel Castro.

Tornou-se então diretor do Teatro Nacional de Cuba. Mudou-se para Paris em 1968, ano de efervescência política e comportamental na capital francesa.

E permanece por lá até naturalizar-se no final dos anos 70.
Manet confessou a Jô, entre outras coisas, que adora a condição de cidadão naturalizado (desde 1979) porque agora tem "direito" de falar dos defeitos da França.

Contou-lhe ainda que o interesse pelos personagens de Frankenstein e Jane Eyre remonta à infância. Daí a idéia de escrever uma peça sobre um encontro fictício entre o monstro de Mary Shelley (1797-1851) e a heroína de Charlotte Brontë (1816-55).

"Jane Eyre" narra a história da moça "pobre, órfã e vulgar", nas palavras da própria, que vive uma história de amor que termina com desfecho trágico. "Frankenstein", romance que Shelley escreveu quando tinha 18 anos, trata da aventura de um cientista que tenta aplicar técnicas racionais para criar uma nova vida e "dá à luz" um monstro.

As histórias têm lampejos sobrenaturais ou fantásticos. "O que sobressai nessa peça é a discussão entre criadoras e criaturas, a vontade das criaturas serem diferentes da forma como são retratadas nos romances", afirma Jô.
Uma definição colhida do compositor Edu Lobo, que vai assinar a trilha de um espetáculo não-musical, entende o enredo como uma metáfora do embate pais e filhos, leitura que surpreendeu o próprio Manet.

"Tudo acontece com humor extraordinário", afirma Jô Soares. Este jogo de diálogos cômicos em clima de suspense lembra algo de "O Mistério de Irma Vap" (1986), de Charles Ludlan, com Marco Nanini e Ney Latorraca dirigidos por Marília Pêra.

Vídeo
Por hora, Jô Soares está rascunhando a encenação. Diz que a tem na cabeça, mas ainda é cedo para verbalizá-la. Cedo, aspas. Nos últimos dois meses, poucos pensamentos lhe ocupam tanto quanto a volta ao teatro.
Exemplo: já tem gravado e editado o prólogo em vídeo do espetáculo. Rastreou pessoalmente os locais por onde passaram as criaturas ou criadores em questão.

Traduziu o texto em três dias. Reuniu-se com Bete Coelho e Mika Lins para uma primeira leitura. Elas, que já contracenaram em "Cacilda!" (1998), sob direção de José Celso Martinez Corrêa, foram seduzidas pelos papéis.

Quem de fato catapultou Jô Soares para a cena novamente foi Bete Coelho. Estavam em um jantar quando o humorista rememorava suas histórias nos palcos, lá pelos idos dos anos 60 e 70.

Em outra ocasião, Jô mostrou à atriz um vídeo de um dos seis espetáculos solos que fez até aqui. Trata-se de um figurante às voltas com personagens como um faraó, um índio, um toureiro e até Danton, um dos líderes da Revolução Francesa.

Jô projeta o mesmo vídeo para a reportagem e afirma que, ali, os diálogos, a relação sincronizada do tira-e-põe de um terno multiplicado em vários "figurinos", sem perder o timing da platéia, tudo isso para ele configura um trabalho de ator, pede uma elaboração distinta da televisão.

Os tipos impagáveis que criou em programas de TV como "Família Trapo" (Record), "Faça Humor, Não Faça Guerra" e "Planeta dos Macacos" (Globo) decorrem da sua formação autodidata nos palcos.

A estréia como ator em São Paulo se deu em "Oscar", de Claude Magnier, dirigido por Walmor Chagas no início dos anos 60.

Logo na primeira leitura de mesa, a atriz Cacilda Becker (1921-69) pespegou-lhe uma frase memorável: "Meu querido, você leu tudo errado, mas vai fazer genialmente". Suou para conquistar o papel-título. "Ia para a casa da Cacilda, ela me ajudava a trabalhar o personagem, me ensinava muito. Nunca me esqueço", diz.

Não demorou e logo assinava direções. A primeira foi "Soraia, Posto 2", um texto de Pedro Bloch, também no início da década de 60.

"O Casamento do Sr. Mississipi" (1965), de Friedrich Dürrenmatt, e "Os Trinta Milhões do Americano" (1966), de Eugène Labiche, espetáculos em que atuou e dirigiu, mereceram críticas com elogios e ressalvas de Décio de Almeida Prado (1917-2000).

O crítico classificou o segundo como "um vaudeville revisto pelo show moderno e cantado pelo ritmo de ié-ié-ié".

"Foi o primeiro espetáculo pop que se fez em São Paulo", outorga-se Jô. Quem sabe movido pela participação de suas obras na 17ª Bienal de São Paulo, no ano seguinte, ele apelou para os efeitos visuais.

Os pensamentos ou diálogos dos personagens "caíam" do teto escritos em balões, como nas histórias em quadrinhos. Um piano também era suspenso no ar. Dois contra-regras serviam como "cavalinhos" de uma carruagem que atravessava a cena.

Em "A Noite em que Mary Shelley Encontrou Charlotte Brontë...", o espaço cênico será desenhado por Daniela Thomas.

Anjo pornográfico
Com o dramaturgo Nelson Rodrigues, Jô Soares travou diálogo à altura, por ocasião da montagem de "Os Sete Gatinhos".

Ao telefone, provavelmente num daqueles aparelhos pretos: "Alô, Nelson. Desculpe-me ligar assim, mas você ainda não é muito conhecido em São Paulo... Quando eu falo o título da peça, as pessoas ficam perguntando se não se trata de uma peça infantil. Será que você não daria outra sugestão de título?", pergunta Jô Soares.

"A Última Virgem", responde Rodrigues, sem respirar, em voz gutural que seu interlocutor aprendeu a imitar com perfeição.

Parafraseando o cineasta Orson Welles, Jô Soares concebe o teatro com um "anacronismo maravilhoso". "Não há como prescindir dele, primeiro como ator. Quando se faz teatro, você cresce como artista e também como ser humano. Basicamente sou um ator, o resto é consequência", afirma.

O humorista encara a arte da representação no palco como um ato de brincar, afinidade com o verbo francês "jouer", jogar, que na pátria de Molière designa o ator de interpretar.

"Ninguém é Coriolano, mas brinca de sê-lo no palco, por mais que se trate de uma tragédia", diz, citando o personagem-título da peça de Shakespeare.

"É por isso que a gente suporta ensaiar oito, dez horas por dia. É como uma criança: quando ela está brincando, não quer sair do brinquedo nem para comer nem para tomar banho."





 

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