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13/07/2002 - 04h16

Crise é dos valores e da cultura, diz Aguinis

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da Folha de S.Paulo

Em entrevista à Folha, de Buenos Aires, onde vive, o escritor Marcos Aguinis fala de "O Atroz Encanto de Ser Argentino", que já está em sua 16ª edição na Argentina e chega agora ao Brasil.

Folha - O tango "Cambalache" hoje é escutado na Argentina como metáfora para estes tempos de crise. No livro, você constrói um paralelo entre a história do tango e a construção da identidade nacional. O gênero ainda é a melhor tradução do "encanto de ser argentino"?
Marcos Aguinis -
"Cambalache" foi escrito na década de 30. Chamamos esse período de "década infame", porque ali começaram ou se consolidaram muitos dos nossos vícios. Não foi infame somente na Argentina, mas no mundo inteiro. Foi a década em que se consolidou o fascismo na Itália e em Portugal, Hitler ascendeu ao poder, aconteceu a Guerra Civil Espanhola, intelectuais foram assassinados e cresceu o número de refugiados políticos.

Folha - E na Argentina?
Aguinis -
Por aqui, cresceu a corrupção, e o Estado inflou-se de maneira desproporcionada. A consequência foi que se criaram as condições para a instauração de um governo populista. Foi o começo da institucionalização de políticas assistencialistas irresponsáveis que danificaram as finanças públicas e adormeceram a iniciativa privada. Produziu-se um debilitamento da decência, do esforço, da justiça e da verdade. Por isso considero que a crise atual deriva de fenômenos profundos, em especial vinculados aos valores e à cultura.

Folha - Você defende a idéia de que o tango possui uma "filosofia insolente", que revela rancor.
Aguinis -
O tango explora os rincões ocultos do inconsciente, facilita a catarse, chora e ri. Também protesta e critica. É um produto genuíno que brota da sociedade.

Folha - O livro diz que os argentinos têm "dificuldade de síntese", pois não conseguiram mesclar o que lhes foi legado pelas tradições ibérica e não-ibérica. Isso explica o fracasso da "utopia argentina"? Como seria a "síntese ideal"?
Aguinis -
Temos a tarefa da síntese. Somos uma colagem que ainda não se consolidou. A Argentina começou sendo um conjunto de províncias que, com muito esforço, se converteu em "províncias unidas". Mas ainda falta ser uma só Argentina.
O povo argentino foi e é permeável, aberto, por isso aqui se difundiram com força as novas correntes da arte e da filosofia. Nossa síntese ideal resultaria num país com raízes locais e muitos ingredientes do mundo.

Folha - Para ter sucesso na Argentina, argentinos como Piazzola, Borges e Gardel tiveram de obter aprovação internacional antes. Como essa submissão cultural convive com o orgulho nacionalista, que você também descreve?
Aguinis -
Toda arrogância encobre um déficit de auto-estima. Acho que o orgulho nacionalista argentino deriva da consciência profunda de nossas debilidades. Éramos um dos dez países mais ricos do planeta e mais cultos do continente, ainda assim, um duende nos soprava ao ouvido o contrário: nem essa riqueza era eterna, nem essa cultura, tão sólida. Então temos dificuldade para reconhecer nossos talentos. Esperamos o aplauso externo e só quando ele vem nós aplaudimos.

Folha - Você indica "El Lazarillo de Tormes" [romance picaresco espanhol do século 16] como fundador da identidade argentina. Que ingredientes vieram de "Facundo" [Domingo F. Sarmiento] e "Martín Fierro" [José Hernández]?
Aguinis -
"El Lazarillo" seria o começo literário de um defeito que muitos consideram uma virtude: "a esperteza criolla". "Martín Fierro" descreve a epopéia e a tragédia do gaúcho que povoou o pampa. Ele se detém em conflitos e injustiças, mas sobretudo denuncia a baixa qualidade da justiça. Há um verso, por exemplo, que aconselha: "Fique amigo do juiz", que é uma realidade que atravessa os tempos. Nesse verso se resume a distorção sofrida pela lei, burlada por juízes a quem se compra com amizade ou dinheiro. Sobre "Facundo", é a obra do melhor escritor que a Argentina teve no século 19, talvez o único que mereça o título de gênio, Sarmiento. Ele descreve a terra e a gente, a bravura e a solidão, a ingenuidade e a esperança.

Folha - O filme "Nove Rainhas" é um exemplo do que você apresenta como "esperteza criolla"?
Aguinis -
Sim, e "Nove Rainhas" é uma demonstração de criatividade, bravura, insolência e qualidade estética. "O Filho da Noiva" vai na mesma direção, assim como "A Fuga". Acho que o cinema argentino de hoje, baseado na realidade, edifica uma outra, mais universal e permanente.

Folha - Por que escreveu o livro?
Aguinis -
Henry Miller disse que não é escritor quem escreve o que quer, e sim quem não pode deixar de escrever o que arde em suas vísceras. Ardia-me a percepção de que cairíamos de um precipício.
 

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