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20/07/2002 - 04h15

Comicidade disseca entranhas corrompidas do país

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NICOLAU SEVCENKO
especial para da Folha de S.Paulo

"O humorista é o último dos homens, um ser à parte, um tipo que não é chamado para congressos, não é eleito para academias, não está alistado entre os cidadãos úteis da República, não planta, não colhe, não estabelece regras de conceito ou de comportamento." Essa é a opinião de um humorista consumado e consagrado, Millôr Fernandes, apesar do seu tom deveras pessimista. A crer nele, quem poderia jamais levar um humorista a sério?

Elias Thomé Saliba, num estudo erudito, sensível e divertido, expôs a profunda seriedade que lateja em todo gesto cômico, da piada à paródia, do chiste à charada, da chufa à galhofa, do livro e do jornal ao teatro de revista. A obra se chama "Raízes do Riso". O título enfatiza as raízes, mas pode crer que lá estão também o tronco, as ramagens, as flores e os frutos.

Um livro cheio de revelações e surpresas hilariantes a cada página. Mas sobretudo muito sério. Concentrado na Belle Époque, o período, grosso modo, entre as duas últimas décadas do século 19 e as duas primeiras do 20, observa o momento decisivo em que um amplo conjunto de mudanças tecnológicas deu origem ao mundo moderno. Esse processo ultra-rápido de transformações abalou as estruturas da ordem social, rompendo os valores, tornando obsoletos os modos de vida e suscitando o anseio pelo novo.

Nesse ambiente de instabilidade, o humor assume papel decisivo. Tanto incita o desprendimento em relação às idéias recebidas e aos valores consagrados quanto decompõe as hierarquias, corrói as certezas e suspende os juízos. Cumpre uma função democrática e emancipadora. Não por acaso, muitas das inteligências mais radicais desse período se puseram a cogitar e teorizar sobre o significado do humor. Gente do gabarito de Henry Bergson, Freud, Pirandello, Brecht e Ludwig Wittgenstein. Mais sério, impossível.

No Brasil, esse período corresponde à passagem da sociedade escravista para o trabalho assalariado. Uma crise histórica de amplas proporções que reconfigurou o país, lançando as bases de uma modernidade, a qual porém nunca se consolidou por aqui. Engastada entre o peso de um passado do qual nunca se livrou e os impulsos de uma modernidade que nunca assimilou por inteiro, a nação se tornou presa fácil de uma horda implacável de pândegos, estróinas e debochados, algozes das elites e heróis aclamados do populacho. Incapaz de definir sua identidade, consolidar instituições ou projetar o futuro, o Brasil se tornou, na expressão genial do profeta José Simão, colunista da Folha, "o país da piada pronta".

Mas o macaco não está sozinho, toda uma legião de facetos, bufões, chocarreiros, pacholas, chacoteiros e farsolas desfilam impávidos e impunes pelas páginas repletas de versos desaforados e ilustrações hilárias. Trata-se aqui da gaia ciência. A galhofa é a tesoura, e o riso, o bisturi, que dissecam as entranhas corrompidas do país. Ou, como diria outro filósofo da pilhéria, o imortal barão de Itararé, "a França teve um Mirabeau, mas é no Brasil que se passam as coisas mais mirabolantes".

Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da USP e autor de "Pindorama Revisitada" (Fundação Peirópolis)
 

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