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18/08/2002 - 08h05

Nydia Lícia relembra o artista e o homem Sérgio Cardoso

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VALMIR SANTOS
da Folha de S.Paulo

A atriz Nydia Lícia foi casada com Sérgio Cardoso por 10 anos, entre 1950 e 1960. Nesse período, além de compartilhar literariamente uma companhia teatral, eles tiveram uma filha, Sylvia, que optou pela carreira de medicina.

Desde a morte de Cardoso, há 30 anos, Nydia, 76, tornou-se uma espécie de depositária da memória do ator.

Nydia mora em São Paulo e dá aulas de voz e interpretação do texto no Teatro Escola Célia Helena. Recentemente, aceitou convite para uma participação em "O Príncipe", filme de Ugo Giorgetti em cartaz na cidade.

Na entrevista a seguir, a atriz revela seu inconformismo quanto à "falta de memória do brasileiro" (secretarias de Cultura e mesmo o teatro batizado com o nome de Cardoso não programaram eventos para lembrar a data). E também fala do mito e do homem Sérgio Cardoso, aquele que era avesso à politização nos palcos e não gostava da televisão que o propagava como galã.

Folha - É escassa a publicação sobre Sérgio Cardoso. Há alguma biografia?
Nydia Lícia - Não existe nada publicado neste sentido, a não ser um trabalho muito bem feito pelo diretor Jamil Dias, como tese de doutorado na USP, há cerca de dez anos. Ele desenvolveu pesquisas no Rio e em São Paulo, mas não chegou a publicar em livro. Você sabe, o brasileiro prima pela falta de memória. Esquece completamente as pessoas que em certo sentido fizeram a cultura deste país.

Folha - É curioso notar também que há poucas referências ao material audiovisual.
Nydia - Na verdade, não há quase nada. As novelas de sucesso foram realizadas na época da TV Tupi, nos anos 50 e 60, cujo arquivo, agora na TV Cultura, tem uma ceninha ou outra guardada. E a Globo, naquele período , embora tivesse grande sucesso popular, também não guarda. Sérgio era conhecido em todas as cidades, recebeu vário prêmios como cidadão honorário. Artisticamente, talvez a melhor coisa que ele fez na televisão foi um caso especial, "O Médico e o Monstro", onde ele conseguiu fazer realmente uma coisa dramática, construída, trabalhada, e não papeizinhos de galã, que ele nunca foi na vida.

Folha - Como a sra. situa a carreira dele no ano em que morre, em 1972?
Nydia - Sérgio estava no auge, tinha 47 anos. Preparava-se para voltar ao teatro com um espetáculo escrito por ele mesmo, um monólogo que se chamava "Sérgio Cardoso em Prosa e Verso". Faltavam apenas cerca de 15 para a estréia. O texto contava um pouco da carreira e trechos de várias peças. Seria um pouco do que ele fez em "O Resto É Silêncio" (1965), quando reuniu trechos da obra de Shakespeare. O monólogo incluiria até um poema que Vinicius de Moraes lhe escreveu, sobre o câncer. Seria um espetáculo para ele viajar pelo Brasil.

Folha - E a convivência com Cacilda, outro mito?
Nydia - Cacilda fez um "Hamlet" com ele também em 1948, na temporada em São Paulo. A atriz que interpretava a rainha Gertrudes no Rio era a Barbara Heliodora [atual crítica de "O Globo"], mas ela estava grávida e Cacilda, então trabalhando no rádio, a substituiu, chamada por Paschoal Carlos Magno. Eles contracenaram ainda em duas peças: "Terceira Pessoa" e "Visita da Velha Senhora", ambas em 1962, quando Sérgio estava praticamente parando com o teatro por causa da televisão. Aliás, eles também trabalharam na TV Record, no "Grande Teatro Royal", ao lado de Walmor Chagas, Ziembinski e eu. Eles se respeitavam muito, já eram dois atores consagrados no país.

Folha - Fale um pouco sobre a mítica interpretação dos "Hamlet" de Sérgio Cardoso.
Nydia - O magnetismo dele em cena era só vendo, não dá para descrever. Ele segurava a platéia de tal maneira que as pessoas, pode-se dizer, enlouqueciam, ainda que este não seja exatamente o termo... Havia quase uma catarse coletiva. Sérgio não era um galã, Não era um homem bonito, alto, musculoso, não era nada disso. Mas ele tinha uma voz tão fantástica. E expressões, inflexões, um gestual fantástico, uma elegância em cena impressionante. Tudo isso cativava o público de tal maneira que homens e mulheres gostavam da interpretação dele. Não era um galã, mas um ator, isso não se discutia. Era um dos maiores atores que apareceu no Brasil.

Folha - E como ele chegou a esse registro de interpretação? Qual era a formação de palco? Autodidata?
Nydia - Isso era pessoal dele. Sérgio era um homem muito culto, muito curioso, detalhista, ia ao fundo dos personagens. Jamais fez um papel superficialmente. Então, quando ele entrava em cena, ou acertava 100% ou errava 100%, mas não ficava no meio termo, nunca ficou. Ele gostava mais de papéis trágicos, dramáticos, como em "A Raposa e as Uvas" (1953), em que interpretava um corcunda, torto, dilacerado, ou ainda em "Henrique 4o" (1957), no papel de um louco. Esses personagens angustiados ele fazia como ninguém. Nunca vi outro ator conseguir a profundidade e a emoção que o Sérgio transmitia com uma frase, um olhar, um gesto.

Folha - Quem ele admirava?
Nydia - O inglês Laurence Olivier e o francês Jean-Louis Barrault eram os grandes atores europeus que ele admirava. Mas Sérgio tinha um respeito muito grande pelos atores nacionais, pelo Procópio Ferreira, pela Dulcina de Moraes. Isso quando os jovens achavam que tal admiração era ridícula. Você sabe, cada geração acha que a anterior não serve para nada. Lembro-me que muitos diziam que esses nomes faziam parte de um teatro superado. O Sérgio nunca disse, sempre respeitou profundamente os atores mais velhos.

Folha - Como ele encarava a televisão?
Nydia - Ele não gostava. No começo foi muito difícil, fazia porque não podia deixar de fazer. Essa mudança na vida dele foi total, de repente ele ficou na televisão e abandonou o teatro.

Folha - Quem eram os amigos mais próximos?
Nydia - Os críticos Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, o Ruggero Jacobbi, que inclusive foi padrinho do nosso casamento, o escritor Péricles Eugênio da Silva Ramos, que traduziu o "Hamlet" em 1956 e o Guilherme de Almeida, que traduziu a "Antígone", de Sófocles.

Folha - Ele sofreu alguma injustiça em vida?
Nydia - A grande injustiça foi política. Quando o pessoal começou com esse movimento político [o Arena, o Oficina, o Opinião, que reivindicavam um teatro mais brasileiro na interpretação e na dramaturgia], praticamente destruiu a lembrança do Sérgio. E o fato de ele ter ido para a televisão foi a pá de cal. Havia muito patrulhamento. Dizia-se: "Sérgio? Quem? Aquele ator da televisão?" Mas acho que ele não se magoava com isso. Ele se afastou do teatro espontaneamente.

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