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27/08/2002 - 13h06

"Abriram meu corpo ao meio", diz dramaturgo inglês Harold Pinter

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo, em Edimburgo

O Harold Pinter que entrou na maior das tendas do Festival Internacional do Livro de Edimburgo, no domingo, chegou com a marca do abatimento.

Calça, paletó, camisa, meia e sapato, tudo do mais escuro preto, sombreavam o rosto cansado e a olheira por trás dos óculos escuros translúcidos.

Um dos principais dramaturgos dos últimos cem anos, o autor inglês fazia sua primeira aparição pública desde que anunciou no começo do ano que estava com câncer. Uma cirurgia pesada e três meses de recuperação depois, lá estava Harold Pinter, 71, sobre o palco. Só ele e a apresentadora do evento, Ramona Koval.

Primeira pergunta: como a doença tinha afetado sua vida. Silêncio, pelo menos 40 longos segundos de silêncio, e então a resposta.

'Abriram meu corpo ao meio. Fiquei mergulhado nas trevas. Foi como se eu tivesse sido arremessado num oceano no qual não podia nadar. Você fica boiando, enfrentando ondas terríveis. Hoje sei o que é a morte.'

Nem um sussurro na platéia, silêncio da jornalista, Pinter retoma. 'Foi escuro e terrível, mas o fato é que estou aqui. Um poema que fiz sobre o câncer falava sobre as células que esqueceram de morrer. Hoje estou feliz em poder anunciar: meu tumor morreu.'

Dos mais de 20 mil espetáculos em cena neste agosto nos festivais de Edimburgo, talvez nenhum tenha recebido tantos aplausos.

Ele ainda não tinha terminado a resposta. 'Eu sempre fui muito engajado politicamente, e de modo muito apaixonado. Agora não sou mais um apaixonado político. Vejo o mundo de forma mais objetiva. Faço parte disso, mas estou do lado de fora também.'

O escritor, poeta, roteirista, ator eventual e autor de 28 peças ('pelo que me lembro') logo deu indícios que seu recém-declarado desamor político era também uma farsa.

Ataque aos poderes
Dos 60 minutos cronometrados de fala, que viriam a ser adicionados a outra meia hora de autógrafos, pelo menos metade foi de ataque aos poderes. O que se chamaria no ramo dos lugares-comuns, de metralhadora giratória.

Lugar-comum, aliás, foi o fio da meada. Começou a atacar os Estados Unidos, seu 'sparring' predileto, pela aflição que lhe dá cada vez que ouve George W. Bush se dirigir à nação com a expressão 'freedom loving people' (algo como povo amante da liberdade). 'Isso é lixo', comentou.

Pior foi o que sobrou para Clinton e para o primeiro-ministro britânico Tony Blair.

'Eles deveriam ser julgados como assassinos', disse, após relembrar o dia em que testemunhou, há três anos, uma menina ser degolada pela explosão de uma bomba dos EUA na Sérvia. 'A Otan é tão criminosa quanto Milosevic.'

O velho ativista Harold Pinter estava em forma. E o abatimento já havia ficado para trás. Vieram os elogios aos zapatistas, do México ('lição de dignidade'), e mais uma saraivada contra Tio Sam.

'O 11 de setembro não foi, claramente, uma ação aleatória de um grupo isolado. Representa o que o universo pensa dos Estados Unidos, a nação mais poderosa e mais odiada do mundo.'

Vale lembrar que o nome da série de eventos que trouxe Pinter ao encontro dos 300 espectadores na tarde de domingo era Provocations (Provocações).

Segundo ato
A apresentadora muda inesperadamente de assunto. Como se começasse um segundo ato de uma peça do dramaturgo-símbolo do realismo absurdo, a entrevistadora emenda o 11 de setembro com uma pergunta sobre as origens da família Pinter.

O autor de 'Homecoming' (Volta ao Lar -uma das ralas peças de Pinter publicadas no Brasil, na saudosa coleção Teatro Vivo, da Abril Cultural) entreabre a porta de sua casa.

'Dizem que a família Pinter vem originalmente da Hungria. Minha mulher afirma que a origem é Odessa. E olha que ela é boa em pesquisa', falou, arrancando risos da platéia (Lady Antonia Fraser, com quem ele é casado há 20 anos, é tida como uma das maiores autoras do mundo de biografias históricas).

'Há quem defenda que os Pinter eram na origem os Pinto, que mudaram o nome após a Inquisição em Portugal.' Pois, pois.

Pinter comentou, então, suas raízes judias. Disse que fez barmitzva (cerimônia religiosa que judeus fazem aos 13 anos) e nunca mais pisou em uma sinagoga.

Lembrou do pai, alfaiate que trabalhava das 6h30 às 6h30, elogiou a estética do críquete -esporte que disse ser um de seus maiores vínculos com a Inglaterra-, bateu na qualidade atual da TV ('um vexame, o voyeurismo'), relembrou a descoberta de Samuel Beckett, dramaturgo que foi amigo e inspirador, e, só aí, falou de trabalho.

'Tudo o que escrevi nos últimos cinco meses foi um poema. Estava preocupado demais tentando sobreviver.' E recitou um trecho do poema 'Meeting'.

O nome é significativo. Encontro. 'Nunca vi ele falar tão abertamente como hoje', disse à Folha, na saída, Susan Hollis Merritt, que pesquisa a obra do dramaturgo desde 1967 e que voou de Nova York só para ver o evento. Valeu. Viu Harold Pinter encontrar um novo Harold Pinter.
 

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