Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
14/09/2002 - 03h41

Henriqueta Lisboa combina o coloquial e o rebuscado

NELSON ASCHER
da Folha de S.Paulo

Não é todo dia que, do passado, um livro surpreendente chega para ficar. É mais provável, porém, que isso aconteça no Brasil, onde a timidez crítica nunca deu efetivamente conta da riqueza criativa, do que em outros países menos desleixados. E tal é o caso da coletânea de "Poesia Traduzida" da mineira Henriqueta Lisboa (1901- 1985).

Enquanto poeta, Henriqueta é dessas vozes cuja delicadeza contribuiu para que não fossem ouvidas como deviam. Sua combinação peculiar de sensibilidade simbolista e técnica modernista ajudou certamente a afastar de seu trabalho tanto os leitores que buscavam um modernismo mais explícito quanto aqueles que se sentiam à vontade com um simbolismo de aspecto mais tradicional.

Se há algo que lhe singulariza a poesia, é sua capacidade de, num texto coloquial e vazado em formas livres, não só entremear palavras e expressões raras ou rebuscadas, mas de fazê-lo de modo tão sutil e apropriado que estas em nada perturbam o desdobrar elegantemente sinuoso do fraseado.

Embora sua obra ainda aguarde uma reavaliação que lhe faça jus, graças ao trabalho exemplar dos organizadores, que prova que as universidades (no caso, a UFMG) podem se tornar literariamente relevantes quando querem, suas traduções estão agora reunidas, à disposição dos leitores, através do cotejo entre originais e versões, a descobrir a riqueza de recursos que a poeta levava aos poemas, os seus ou os alheios.

Com exceção de alguns poucos poemas traduzidos do inglês e do alemão, os originais deste volume são italianos e espanhóis. Seus pontos altos são três sonetos e 14 cantos do "Purgatório", de Dante Alighieri, bem como uma seleção de textos de dois poetas da Itália moderna: Giuseppe Ungaretti e Cesare Pavese.

Ungaretti é um poeta que impõe a seus tradutores dificuldades quase intransponíveis, pois devido à exiguidade exata e exigente de seus poemas, basta uma palavra mal calculada para que a tradução se despenhe numa banalidade sem fundo. E é sua própria combinação de coloquialidade e rebuscamento que, nesse caso, permitiu à mineira desempenhar a tarefa.

Nem por isso falta talento ao seu trabalho com os espanhóis e hispano-americanos, como Lope de Vega e Gabriela Mistral. Português e espanhol são duas língua tão próximas entre si (enganadoramente próximas, de fato), que transpor obras literárias de uma para a outra, quando não supérfluo, parece fácil. Só que não é.

Ambas as línguas se relacionam como falsos cognatos e, quando se trata de verter, por exemplo, um soneto, chega-se frequentemente à situação em que três das quatro rimas dos quartetos são as mesmas, mas a quarta é impossivelmente diferente. Assim, embora no soneto de Lope não haja como fugir às rimas em "eto" ("soneto", "quarteto" e "terceto"), seu segundo verso diz: "Que en mi vida me he visto en tanto aprieto" (nunca na vida me vi em tamanho aperto). O que fazer com isso? A solução de Henriqueta: "E de apertado vejo tudo preto". Ótima.

Não são poucos, portanto, os prazeres que se oferecem nessas páginas. Com sorte, eles incentivarão outros críticos e pesquisadores a reunirem e republicarem as traduções, hoje em dia esquecidas ou perdidas, dos demais poetas modernistas: o Tardieu ou o Brecht de Bandeira, o Molière de Drummond, e o Calderon de la Barca de João Cabral.

POESIA TRADUZIDA - coletânea de Henriqueta Lisboa. Editora: UFMG. Quanto: R$ 37 (487 págs.).
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página