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21/09/2002 - 03h09

Juan José Saer alarga a noção de literatura

BERNARDO CARVALHO
da Folha de S.Paulo

Muita gente só percebe o valor de um estado democrático e laico depois de conhecer as ditaduras e os estados religiosos. Muita gente só percebe o valor libertário da arte e da literatura modernas depois de conhecer a opressão e o obscurantismo de um mundo sem arte ou no qual ela está submetida a funções sociais e religiosas, como meio e não como fim, a serviço da perpetuação de um estado de coisas.

O argentino Juan José Saer é um dos raros escritores que, na atualidade pouco receptiva aos desvios e à inconformidade, recusa-se a abrir mão da liberdade conquistada pela arte e pela literatura no século 20, a despeito do movimento progressivo que procura submetê-las novamente a uma função social, seja a uma determinada moral (no caso do politicamente correto, dos nacionalismos e dos populismos) seja ao consenso do mercado (a literatura só existe e só merece existir quando vende).

Como poucos, Saer tem uma consciência aguda dessa ameaça ("a experiência estética, que é uma das nossas últimas liberdades, está sob constante ameaça", disse em 81) e a resistência que se manifesta em seus livros, em geral com uma boa dose de humor, é uma celebração da liberdade.
Vem daí o prazer que romances aparentemente tão díspares, como "O Enteado", "Glosa" (1986), "Ninguém Nada Nunca" e "A Pesquisa" (publicados pela Companhia das Letras em 1997 e 1999, respectivamente), despertam no leitor disposto a compartilhar desse elogio da invenção.

"É preciso reconhecer que quase todas as grandes iluminações, exaltações, conversões ou revelações dos tempos modernos vêm da leitura", diz um personagem da coletânea de relatos "Lugar" (2000, inédita no Brasil). Para Saer, como para os melhores escritores modernos, a literatura é um jogo a dois, em que o leitor tem papel ativo, pois a leitura é também forma de resistência.

Como todo grande escritor, Saer não pode ser reduzido ou atrelado a nenhum movimento. Não faz parte disso ou daquilo. É uma voz que, na sua singularidade, contribui para a difusão da idéia da imaginação como exercício do que pode haver de mais libertário no ser humano. E nisso a sua literatura não podia ser mais radical. Saer é um dos maiores escritores argentinos não por repetir o que já se conhece como literatura argentina, mas por alargar essa noção e essa realidade.

"Os dados extra-artísticos (nacionalidade, origem social, "espírito do tempo", influências culturais etc.) são secundários. Os verdadeiros criadores só representam a sua época se eles a contradizem", Saer sentenciou numa entrevista. Auto-exilado na França desde 1968, o argentino pôde sentir na pele as limitações impostas pela camisa de força constituída por esses "dados extra-artísticos".

Por um lado, a caricatura paternalista que o mundo desenvolvido (hoje representado sobretudo pelo mercado anglo-saxão) faz da arte e da literatura da periferia e, por outro, o populismo e o oportunismo com que a literatura dos países periféricos assume tal imagem: "A narração não é nem um documento etnográfico nem um documento sociológico. (...) Se a obra de um escritor não coincide com a imagem latino-americana que dele faz o leitor europeu, deduz-se dessa divergência a inautenticidade do escritor. (...) O nacionalismo e o colonialismo são, portanto, dois aspectos de um mesmo fenômeno". Devia ser óbvio, mas infelizmente não é.
 

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