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05/10/2002 - 03h09

Letra de música é ou não é, enfim, poesia?

NELSON ASCHER
Articulista da Folha de S.Paulo

Letra de música é poesia? Entra ano, sai ano, a discussão se repete idêntica, inclusive na ausência perpétua de um veredicto consensual. Pelo menos no Brasil.

Faça-se essa pergunta ao mais aberto e experimental dos literatos franceses, e sua resposta inevitável será um indignado "não": nem sequer George Brassens faria jus a um lugar na esfera mais rarefeita da "civilization française".

Um norte-americano chegaria à mesma conclusão, mas por caminhos diferentes, pois no seu universo a poesia não deve pertencer à esfera mercantil da qual a canção de consumo, ainda que composta por Woodie Guthrie ou Bob Dylan, faz parte.

Quanto aos nossos vizinhos hispânicos, desde que a composição seja de protesto, seu autor, Violeta Parra ou Pablo Milanés, podem ser chamados de poetas, sobretudo se, como Victor Jarra, foram vítimas da repressão.

Em nosso país, são dois os campos que se opõem. De um lado, vanguardistas, muito da universidade e a esquerda, em geral, dizem que aquilo que Caetano ou Chico fazem é poesia; de outro, escritores e críticos literária e poeticamente conservadores acham essa idéia escandalosa.

O que ocorre é que a discussão toda está mal posta, já que se trata, antes de mais nada, de um problema de definições.

Dependendo de onde se coloquem os limites da poesia, as letras estarão dentro ou fora deles. Ademais, o que no fundo move os debatedores, a questão do status ou da dignidade cultural, raramente vem à tona.

Quem afirma que letra é poesia quer na verdade promovê-la a uma posição que julga mais elevada. Seus opositores, que acreditam ainda mais intensamente em tal hierarquia, preferem manter separadas as águas, talvez para não turvar a que brota nas fontes do Parnaso.

O caso brasileiro se complica não só devido às relações harmônicas mantidas desde, pelo menos, Vinicius de Moraes, entre poetas, letristas e compositores, como também porque é difícil imaginar critérios esteticamente honestos que não coloquem, durante o último meio século, a nata da MPB acima do grosso da poesia contemporânea.

Mas, afinal, letra é ou não é poesia? A única resposta razoável é: depende. De como, onde, quando e por quê. Identificar sempre ambos os tipos de produção é de fato ruim, só que não tanto para os poetas, quanto para os letristas e compositores.

Por mais que, com a mesma matéria-prima verbal, criem objetos semelhantes, eles trabalham de acordo com limitações e convenções diferentes, respondendo a/ou desafiando tradições que não coincidem de todo.

Por exemplo, a maior parte da poesia brasileira que descende do modernismo tem sido escrita em versos livres e sem rima, de modo que, contraposta a ela, quase toda a MPB, por ser metrificada e rimada, pareceria injustamente tradicionalista. Caetano, quando compõe, pode estar pensando em Noel Rosa e em Drummond. Um poeta atual também, mas provavelmente na ordem inversa.

Há palavras, expressões, recursos que, corriqueiros na poesia, são quase impossíveis de usar na MPB. E vice-versa.

Uma vez que as mesquinhas disputas em torno do prestígio cultural sejam postas de lado, a música popular tem apenas a ganhar se for examinada, julgada e, principalmente, desfrutada nos seus próprios termos, que, embora nem inferiores nem superiores, tampouco são sempre os mesmos que os da poesia.
 

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