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16/10/2002
-
11h47
colunista da Folha de S. Paulo
Pinóquio está de volta. O filme de Roberto Benigni ainda não entrou em cartaz, mas o livro de Collodi está sendo editado simultaneamente pela Iluminuras, com tradução e ilustrações de Gabriella Rinaldi, e pela Companhia das Letras, com tradução de Marina Colasanti.
Há também uma exposição no Sesc Pompéia sobre o incompreendido boneco de madeira. Pinóquio é bem mais do que a imagem corriqueira que temos dele, fixada pelo desenho animado de Walt Disney e pelo proverbial nariz que cresce a cada mentira.
No livro de Collodi, Pinóquio não é tão mentiroso assim, ou, se quisermos, não é esse o seu principal defeito. Ele pode igualmente ser acusado de imediatismo, de preguiça, de desinteresse pelo estudo, de insolência e de brusquidão. Ao longo de suas aventuras, Pinóquio é castigado mais pela credulidade (é enganado todo o tempo, lembremo-nos do Gato Cego e da Raposa Manca) do que pelas inverdades que profere.
Inverídico, se se pode dizer assim, é sem dúvida o desenho de Walt Disney -que atenua, acho até que com bons motivos, as violências e terrores da história original.
Há muitos. O leitor moderno leva um susto ao ver Pinóquio, logo no capítulo 4º, assassinando o Grilo Falante com uma marretada na cabeça.
Em outro momento, Pinóquio está perdido na floresta. Vê uma casinha branca ao longe; vai até lá. Bate à porta, pedindo ajuda. Silêncio. Ele se desespera; começa a dar chutes e cabeçadas na porta. "Então apareceu na janela uma linda menina, com os cabelos azuis e o rosto branco como uma imagem de cera, os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o peito."
Sem mexer os lábios, a menina diz a Pinóquio: "Nesta casa não há ninguém. Estão todos mortos". Pinóquio pede-lhe que abra a porta. Ela diz que não pode, pois está morta também. "Morta? E então o que está fazendo nessa janela?", pergunta Pinóquio. "Espero o caixão que irá levar-me embora."
Logo adiante, aparecem coveiros para pegar o próprio Pinóquio; a coisa toda é de assustar. É provável que um dos objetivos principais da literatura infantil de antigamente não fosse o de divertir ou estimular intelectualmente as crianças, mas, sim, o de aterrorizá-las, impondo-lhes a obediência e o silêncio -justamente as virtudes de que Pinóquio mais carece.
Dá vontade de ficar comentando mais longamente o livro de Collodi. Mas eu queria chamar a atenção para um outro livro, também publicado pela Companhia das Letras neste "ano Pinóquio". É do escritor italiano Giorgio Manganelli (1922-1990) e se chama "Pinóquio: um Livro Paralelo".
O texto se apresenta como um comentário, passo a passo, das aventuras do boneco. Engana-se, contudo, quem disser que se trata de um ensaio de crítica literária. Giorgio Manganelli se entrega a uma espécie de delírio hermenêutico, numa prosa riquíssima, dirigindo ao texto de Collodi uma série de perguntas ao mesmo tempo simples e vertiginosas, infantis e irônicas.
Sobre o episódio da casa da menina morta, Manganelli escreve: "Estranhamente ameno é o mistério da "casinha alva". Onde Pinóquio foi parar? Na casa, "todos" estão mortos. Mas quem eram eles?". O raciocínio do autor vai dando voltas em torno do mistério, como quem quisesse entrar na casa.
"Recordemos", diz Manganelli, "que a casinha aparece no fundo de um bosque denso e escuro: ela aparece como um lugar mágico e inacessível. Sua familiaridade é ilusória; a hospitalidade, falsa. Na escuridão das árvores, sua alvura -como a palidez da Menina de cabelos noturnos- tem um gélido esplendor lunar."
O que leva a hipóteses estonteantes: "Que caixão poderia levar a Menina? O carro do sol?". Ou então é o próprio Pinóquio quem vem livrá-la do feitiço. Será que a Menina se enfeitiçou a si mesma? Será que a Menina mentia, dizendo-se morta?
Lembranças ultra-românticas tomam conta do texto, que em outros momentos parece comentar, a propósito de Pinóquio, passagens de Hegel, de Goethe ou de Foucault. Mas não há nada de pretensiosamente cifrado no livro de Manganelli, que não se contém de simpatia pelo leitor e pelos personagens que analisa. A todo momento, o livro faz como se estivesse recolhendo do chão os fragmentos da narrativa, e como se tentasse recompô-los com a paciência de quem conserta um brinquedo que alguma criança destruiu.
Não é que "Pinóquio: um Livro Paralelo" seja obscuro; seu objetivo seria o de mostrar a obscuridade de qualquer fábula a partir do momento em que se quer entendê-la mais do que é possível. Por que Gepeto usa peruca? Como é que tantos personagens sabem o nome de Pinóquio antes mesmo que ele se apresente? Por que Pinóquio nasce "numa noite de inverno"?
Questões aparentemente pueris como essas vão crescendo e se ramificando ao longo do texto. Morte, miséria, terror e servidão acompanham a vida de Pinóquio. Governado "por um oculto e multiforme futuro", como diz Manganelli, nosso herói se entrega à imprudência e à esperança.
Injusto, assim, dizer que Pinóquio é apenas um mentiroso. Mentiroso é o mundo inteiro em que ele transita; e ler o livro de Manganelli é um bom antídoto para as mentiras do nosso.
Marcelo Coelho: É injusto dizer que Pinóquio é um mentiroso
MARCELO COELHOcolunista da Folha de S. Paulo
Pinóquio está de volta. O filme de Roberto Benigni ainda não entrou em cartaz, mas o livro de Collodi está sendo editado simultaneamente pela Iluminuras, com tradução e ilustrações de Gabriella Rinaldi, e pela Companhia das Letras, com tradução de Marina Colasanti.
Há também uma exposição no Sesc Pompéia sobre o incompreendido boneco de madeira. Pinóquio é bem mais do que a imagem corriqueira que temos dele, fixada pelo desenho animado de Walt Disney e pelo proverbial nariz que cresce a cada mentira.
No livro de Collodi, Pinóquio não é tão mentiroso assim, ou, se quisermos, não é esse o seu principal defeito. Ele pode igualmente ser acusado de imediatismo, de preguiça, de desinteresse pelo estudo, de insolência e de brusquidão. Ao longo de suas aventuras, Pinóquio é castigado mais pela credulidade (é enganado todo o tempo, lembremo-nos do Gato Cego e da Raposa Manca) do que pelas inverdades que profere.
Inverídico, se se pode dizer assim, é sem dúvida o desenho de Walt Disney -que atenua, acho até que com bons motivos, as violências e terrores da história original.
Há muitos. O leitor moderno leva um susto ao ver Pinóquio, logo no capítulo 4º, assassinando o Grilo Falante com uma marretada na cabeça.
Em outro momento, Pinóquio está perdido na floresta. Vê uma casinha branca ao longe; vai até lá. Bate à porta, pedindo ajuda. Silêncio. Ele se desespera; começa a dar chutes e cabeçadas na porta. "Então apareceu na janela uma linda menina, com os cabelos azuis e o rosto branco como uma imagem de cera, os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o peito."
Sem mexer os lábios, a menina diz a Pinóquio: "Nesta casa não há ninguém. Estão todos mortos". Pinóquio pede-lhe que abra a porta. Ela diz que não pode, pois está morta também. "Morta? E então o que está fazendo nessa janela?", pergunta Pinóquio. "Espero o caixão que irá levar-me embora."
Logo adiante, aparecem coveiros para pegar o próprio Pinóquio; a coisa toda é de assustar. É provável que um dos objetivos principais da literatura infantil de antigamente não fosse o de divertir ou estimular intelectualmente as crianças, mas, sim, o de aterrorizá-las, impondo-lhes a obediência e o silêncio -justamente as virtudes de que Pinóquio mais carece.
Dá vontade de ficar comentando mais longamente o livro de Collodi. Mas eu queria chamar a atenção para um outro livro, também publicado pela Companhia das Letras neste "ano Pinóquio". É do escritor italiano Giorgio Manganelli (1922-1990) e se chama "Pinóquio: um Livro Paralelo".
O texto se apresenta como um comentário, passo a passo, das aventuras do boneco. Engana-se, contudo, quem disser que se trata de um ensaio de crítica literária. Giorgio Manganelli se entrega a uma espécie de delírio hermenêutico, numa prosa riquíssima, dirigindo ao texto de Collodi uma série de perguntas ao mesmo tempo simples e vertiginosas, infantis e irônicas.
Sobre o episódio da casa da menina morta, Manganelli escreve: "Estranhamente ameno é o mistério da "casinha alva". Onde Pinóquio foi parar? Na casa, "todos" estão mortos. Mas quem eram eles?". O raciocínio do autor vai dando voltas em torno do mistério, como quem quisesse entrar na casa.
"Recordemos", diz Manganelli, "que a casinha aparece no fundo de um bosque denso e escuro: ela aparece como um lugar mágico e inacessível. Sua familiaridade é ilusória; a hospitalidade, falsa. Na escuridão das árvores, sua alvura -como a palidez da Menina de cabelos noturnos- tem um gélido esplendor lunar."
O que leva a hipóteses estonteantes: "Que caixão poderia levar a Menina? O carro do sol?". Ou então é o próprio Pinóquio quem vem livrá-la do feitiço. Será que a Menina se enfeitiçou a si mesma? Será que a Menina mentia, dizendo-se morta?
Lembranças ultra-românticas tomam conta do texto, que em outros momentos parece comentar, a propósito de Pinóquio, passagens de Hegel, de Goethe ou de Foucault. Mas não há nada de pretensiosamente cifrado no livro de Manganelli, que não se contém de simpatia pelo leitor e pelos personagens que analisa. A todo momento, o livro faz como se estivesse recolhendo do chão os fragmentos da narrativa, e como se tentasse recompô-los com a paciência de quem conserta um brinquedo que alguma criança destruiu.
Não é que "Pinóquio: um Livro Paralelo" seja obscuro; seu objetivo seria o de mostrar a obscuridade de qualquer fábula a partir do momento em que se quer entendê-la mais do que é possível. Por que Gepeto usa peruca? Como é que tantos personagens sabem o nome de Pinóquio antes mesmo que ele se apresente? Por que Pinóquio nasce "numa noite de inverno"?
Questões aparentemente pueris como essas vão crescendo e se ramificando ao longo do texto. Morte, miséria, terror e servidão acompanham a vida de Pinóquio. Governado "por um oculto e multiforme futuro", como diz Manganelli, nosso herói se entrega à imprudência e à esperança.
Injusto, assim, dizer que Pinóquio é apenas um mentiroso. Mentiroso é o mundo inteiro em que ele transita; e ler o livro de Manganelli é um bom antídoto para as mentiras do nosso.
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