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07/08/2000 - 10h21

Entrevista: "O enviado de Shakespeare"

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GERALD THOMAS
especial para a Folha de S.Paulo

Acho que a única coisa que temos em comum é o casaco de couro e uma âncora flexível. Nos vimos poucas vezes, e cada encontro aconteceu num dos três países que pontuam nossas vidas e parecem ser a causa de toda alegria, tristeza e saudades. O primeiro foi em Londres, faz muito tempo.

Lembro-me de que sentamos na cafeteria da Royal Shakespeare Company (eu era um recém-chegado da minha primeira produção brasileira, "4 x Beckett", com atores consagrados como Rubens Correa, Ítalo Rossi e Sergio Britto), e nossa conversa parecia estar focada no talento e na capacidade e sofisticação de improviso dos atores brasileiros.

O segundo foi em Nova York, faz dois anos, no Untitled Space Cafe, na Greene Street, no SoHo. Não sei muito bem por quê, acabamos nos reencontrando por meio de uma amiga, aliás, arquiinimiga comum. Ron parecia estar berrando de saudades do Brasil.

Falava pela barriga e parecia se contorcer a cada vez que mencionávamos a nossa falta ou excesso de identificação cultural com todos os países por onde transitamos e onde fincamos nossas âncoras. Ele, como eu, estava farto desse trânsito tumultuado, espalhando produções por todos os lados e acabando meio sem vínculos com coisa nenhuma.

O Brasil parecia, naquela hora, uma espécie de terra prometida. Não é fácil admitir tal coisa em Nova York, a terra/objeto de conquista para cada ser ambicioso no mundo. Mas o fato é que a vida para diretores off-Broadway, ou para aqueles que não se sentem à vontade dentro do esquema quase industrial do teatro americano, está cada vez mais difícil.

Não é que o teatro experimental tenha morrido na terra dos sitcoms e dos ponto.com. Mas apresenta sintomas de uma saúde em pleno declínio. Nesse encontro, Daniels falava de uma possível vinda ao Brasil para montar "Rei Lear", mas isso parecia um desejo distante. Fico extremamente feliz que esse sonho tenha se concretizado. O projeto está perto de estrear -dia 24, no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo.

Não conheço o seu teatro, assim como ele não conhece o meu. Mas há algo de muito carinhoso entre nós, uma espécie de cumplicidade e ironia "montypythoniana" a respeito dos lugares por onde deixamos nossas impressões. E, apesar de nossas profundas diferenças ideológicas ou estéticas, tenho a certeza de que esse "Rei Lear", construído em torno do grande ator Raul Cortez, será o máximo.

Ao contrário dos dois outros encontros, nesse terceiro, em São Paulo, ele estava radiante. Apesar de não fumar, parecia tragar a fumaça do meu Gitanes e gesticulava freneticamente sentado num sofá. Aqui está um resumo da nossa conversa.


Folha - Quando a gente se encontrou em Nova York, você estava morrendo de saudades do Brasil. Você falava: "Eu preciso ir".

Ron Daniels - Eu queria fazer um trabalho aqui, depois de 35 anos.

Folha - Trinta e cinco anos de ausência artística?

Daniels - Trinta e cinco, 36. E então, quando a (atriz) Lígia Cortez me chamou para dar um curso na escola dela, várias coisas aconteceram. Uma, eu me reencontrei com o Raul (Cortez). Eu tinha trabalhado como ator com ele em 59, no "Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues, e depois nos "Pequenos Burgueses". E o Raul está no momento exato para fazer um rei Lear magnífico. Só se faz um "Rei Lear" quando se encontra um ator pronto para o papel.

Folha - Você só encontra um Próspero, um Hamlet, com uma pessoa que está pronta para isso.

Daniels - É, mas o Lear mais do que todos. A outra coisa que aconteceu foi que o Zé (Celso) estava ensaiando a "Cacilda". Fui lá e fiz uns trabalhos com o elenco.

Folha - Macumba?

Daniels - Que macumba? Não.

Folha - Trabalhos...

Daniels - Não, mas quase macumba, isso que foi maravilhoso. Fizemos uma improvisação que durou, sei lá, uma hora.

Folha - E o estilo Gerald Thomas da Bete Coelho não te atrapalhou?

Daniels - Não. Foi um negócio tão magnífico, realmente um trabalho quase de loucura. E achei que o ator brasileiro tem qualquer coisa de maravilhoso. Uma capacidade de mágica, de incorporação do personagem.

Folha - Só encontrei coisa parecida na Polônia, quando trabalhei com um grupo do Tadeusz Kantor. O ator brasileiro tem uma capacidade absoluta de transcender tanta dificuldade, que baixa o santo.

Daniels - Você deve conhecer isso bem, mas as diferenças culturais são muito interessantes. Fazer Shakespeare no Japão é diferente de fazer na Inglaterra, nos EUA, e está sendo diferente de fazer um Shakespeare no Brasil.

Folha - Você pode me dar exemplos distintos?

Daniels - Fiz dois espetáculos no Japão, "Titus Andronicus" e "Hamlet". Nos EUA, fiz uma porção, inclusive "Antônio e Cleópatra", "Romeu e Julieta", "Ricardo 2º". Os EUA têm um ecletismo que a Inglaterra não tem. Na Inglaterra, são muito mais rigorosos estilisticamente. No Japão, querem ser ocidentais. Agora venho para o Brasil e é claro que trago 35 anos de espetáculos, mas, ao mesmo tempo, tenho de reavaliar tudo o que conheço de Shakespeare pelos olhos do ator brasileiro. Talvez aconteça uma síntese entre a disciplina de texto, de contar histórias, de permitir que o público se entrose nos mitos e a loucura do ator brasileiro.

Folha - É o original do Shakespeare sem adaptações, sem cortes?

Daniels - Não, com muitos cortes. É uma adaptação, mas simplesmente por meio de cortes, porque a peça é muito longa.

Folha - Você já montou "Lear"?

Daniels - Nunca. O que eu estou descobrindo -e essa é a palavra- é que o "Lear" é uma história em que pelo menos quatro personagens perdem tudo. Entram no mundo dos desamparados -quer seja ficar marginalizado do poder ou ser exilado, não ter mais suas raízes nacionais, ou ainda se tornar um foragido. Esses personagens entram num mundo que não conhecem. A peça é sobre isso, o desamparo.

Folha - Quem fez a tradução?

Daniels - Eu. O que eu queria era um texto completamente despojado. Não quero que ninguém tenha de levar um dicionário para saber o que é uma palavra.

Folha - Brilhantemente dito.

Daniels - O público não pode se sentir excluído do texto.

Folha - Uma vez ouvi um comentário de um grupo de atores cariocas enfurecidos com você porque você teria declarado que não tem ator no Brasil preparado para fazer Shakespeare. Mudou de idéia?

Daniels - Eu não me lembro disso. E não faz sentido. Eu gosto de ator. A gente sempre trai nossas raízes, e eu comecei como ator, contando histórias sobre personagens. Mas completamente a serviço do poeta, do escritor. Você, por exemplo, é um autor, escreve as suas próprias peças.

Folha - É o mínimo que eu posso fazer pelo tempo em que vivo.

Daniels - Acho isso maravilhoso, que você possa criar as suas obras do nada. Eu preciso do poeta. Preciso da visão do poeta e, principalmente, da visão de Shakespeare, que acho a coisa mais extraordinária. Quando estou ensaiando, não penso em nada, não estou presente. É realmente uma ausência. Falo o dia todo, dirijo, mas não tem uma coisa na minha cabeça. Ela se esvazia perante a obra de Shakespeare. É quase o contato que o (diretor inglês) Peter Brook chama de harmonia espiritual.

Folha - O autor Ron Daniels não se expressará em nenhuma hora?

Daniels - O que eu acabo de dizer talvez seja falsa modéstia, porque espero, tenho certeza de que vai ter também algo de mim no palco.

Folha - É difícil responder a essa pergunta, me fazem, e eu não sei o que dizer, mas como é que o Brasil se encaixa nos seus planos futuros?

Daniels - Olha, eu sou mambembe. Sou cidadão do mundo agora. Tenho um amor inacreditável pelo Brasil, minha família está aqui. Meus filhos estão na Inglaterra, minhas raízes de Shakespeare estão na Inglaterra, mas também adoro morar nos EUA. Então, fico sempre viajando. Meu inglês é tal que ninguém sabe, na Inglaterra, que sou brasileiro. Todo mundo esqueceu que sou brasileiro.

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