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07/12/2002 - 03h59

Com "Os Sertões", que estréia hoje, o Oficina funda o TBI

BETTY MILAN
especial para a Folha de S. Paulo

Você ouve um tambor. A peça vai começar. As portas do teatro se abrem. São azuis. Oficina Paraíso, Teatro Oficina. Os atores de branco vêm te buscar. Dançando e cantando: "Meu cavalo tá pesado, tem vontade de voar". Você dança também. Deixa passarem a mão no teu corpo. Tua cabeça, teu ombro, teu braço. Você se deixa limpar. Para assistir "Os Sertões" precisa-se estar limpo, estar leve.

O sorriso de Marcelo Drummond é light. Resistiu e ganhou todas. Como o Zé, com o Zé. Vieram te buscar e você entra com eles, já transformado num personagem da peça, já tomado pelo drama de Canudos. Você senta para assistir. Marcelo te convida a levantar. Braços para o alto, peito aberto, olhar franco e você se levanta para fazer o que ele faz. Antes de tudo, meu, é preciso respirar. E o público zen respira e vê que o chão de cimento está coberto de areia. Com isso, você já se transporta para o sertão.

Para a encenação de "Sonho de uma Noite de Verão", o Globe Theater se valeu só do colchão e do pijama. Para "Os Sertões", o Oficina se valeu da areia. Estamos empatados. Maravilha, e você continua a fazer os gestos e produzir os sons. Barulho de beijo, estalar de língua. Mostra a língua, meu bem, mostra tudo o que é humano e a burguesia nunca ousaria mostrar. Você entra na peça e diz: "Hum hum hum". Diz: "Ó, ó, ó". Depois diz: "Ó qui ó qui ó qui". E ouve: "Aqui ó"! Dê logo a sua banana. Para quem? Principalmente para o Silvio, claro. O Silvio Santos que entrou em todas as peças e também nesta, porque ele é o símbolo do capitalismo selvagem.

Mas isso que eu estou vendo o que é? Peça de teatro? Ópera? Que pergunta, ora... Picasso pintava como quem esculpe e esculpia como quem pinta. Veja se renuncia logo à convenção e deixa a poesia estar, o ritual acontecer. Bate tambor. E, com o Marcelo, você repete "Hop, hop, hop, ho o o". Até ele entrar no papel do narrador e dizer: "'Os Sertões' foram escritos por Euclydes da Cunha nos raros intervalos de folga... Irritam-me as meias-verdades que não passam de mentiras... Autores que citam os fatos, mas desfiguram a alma... Quero ser bárbaro contra os bárbaros... Antigo entre os antigos". Com isso, ele expressa e assume a estética do Oficina que quer a alma do texto e ganha porque faz bater o coração.

A peça propriamente dita começa, contando que no início era a viagem. Ia Euclydes se deslocando, descobrindo a terra brasileira, o planalto central do Brasil, que desce nos litorais do sul "em escarpas inteiriças, altas e abruptas". Como o narrador, os atores se deslocam, e você viaja até ver no centro do teatro um casal, ela vestida de longo, dançando abraçada com ele ao som de um tambor. A que veio? Você só entende depois. Como sempre, nas peças do Zé, na vida, na psicanálise. Entende que o casal simboliza o drama pessoal de Euclydes e do Conselheiro, abandonados pelas suas mulheres.

Daí, como a terra do sertão não existe sem o rio, este entra em cena e diz: "Me chamo São Francisco". Porque, na dramaturgia de Zé Celso, como nos livros de Monteiro Lobato, tudo o que existe fala, tem alma. Fala a terra, fala o rio, fala o sabugo e o rinoceronte, exatamente como nós.

"Nenhuma natureza se afigura tão afeiçoada à vida", diz um dos atores, acrescentando que isso "justifica todos os exageros deste país". E você viaja, passando da beira-mar do Espírito Santo e da Bahia para a bacia do rio São Francisco, até atingir o vale do rio Vaza-Barris. Viaja, olhando os panos tão longos quanto o corredor do teatro, os panos que ondulam como o rio. Verde, amarelo e vermelho. Vermelho por quê? Por causa do rio de sangue que escorreu?

Você ouve a língua suntuosa de Euclydes. Possível que alguém tenha ousado escrever "ciclópicos coliseus"? E você redescobre, graças ao Oficina, que o tesouro da língua está acima de tudo. Graças a este Teatro Brasileiro da Inclusão, o TBI, onde as meninas e os meninos lindos do Bexiga rebolam dizendo em alto e bom som as palavras de Euclydes da Cunha. A universidade baniu a literatura, o teatro incluiu e vai educar. Ó Qui Ó Qui Ó Qui. Banana, meu bem. Oh, yes, nós temos banana para dar e vender. Temos uma farândola que nem o Fellini do "Oito e Meio" ousou imaginar. Aqui em Tão Paulo, no sertão do teatro, onde os atores e as crianças vão dizendo: "Amplitudes dos Gerais, maciço continental". Ó qui para a língua pobre da internet.

E você chega ao Vaza-Barris, à margem do qual se encontrava a comunidade de Belo Monte. Você vê no palco do alto, no da esquerda, Euclydes da Cunha surgir, Marcelo Drummond vestido de terno e chapéu preto, rosto pintado de branco. Porque era preciso ser branco para falar da terra e do mestiço como Euclydes falou. Ser formado como um doutor, como a alemã que entra em cena lendo "Os Sertões" em alemão. Para você se lembrar de que "Os Sertões" existe em muitas línguas antes de ouvir: "Nenhum pioneiro da ciência suportou o sertão _sempre evitado, até hoje desconhecido"...

O quadro que se segue (porque a peça só é teatro sendo pintura) é o de Euclydes da Cunha na frente de Conselheiro. Face a face. Daí por diante, os dois vão se espelhar. Como na vida real. Um e outro traídos pela mulher. E nesse espelhamento o Conselheiro pede o fim da maldição de que é vítima o sertão. Pede visualizando Monte Santo. E o tema agora é o Vaza-Barris, que também fala, claro. Fala a terra, fala o rio, como as árvores e as flores falarão. Todos são personagens, como todos os atores são narradores. Para que "Os Sertões" seja definitivamente apropriado e você ouça que ali reinam "calmarias pesadas, dias causticantes".

1897, fins de setembro. Euclydes percorre as cercanias de Canudos e o senador Eduardo Suplicy, que está entre os espectadores, ouve e lê atentamente o livro. Subitamente, aparece o primeiro personagem da tragédia, um soldado que há três meses descansa. Um morto. E, agora, são dois Euclydes da Cunha que você vê em cena. Porque, se o escritor não se desdobrasse, ele não escreveria. Há sempre dois, um que vive e outro que observa.

O morto, os cavalos mortos "como espécimens empalhados de museus". São cavalos como animais fantásticos sobre um chão onde "cada partícula de areia irradia a combustão da terra" e Antônio Conselheiro pisa vestido exatamente como Euclydes da Cunha, segurando uma mala prateada nas mãos.

Fala do mal de não ser amado, da dor de corno e da jura de não matar ninguém. Por isso, aliás, ele deixou a "civilização". Vários atores vão encarnar o Conselheiro e contar a história do seu renascimento de cajado e lençol branco no sertão. Você ouve repetidamente a palavra caatinga e descobre como ela é linda. A palavra feita nota musical. Euclydes se aproxima de Conselheiro, enquanto Zé Celso, que também é escritor, olha. Você olha o Zé, que olha Euclydes (Marcelo), que olha o Conselheiro. Todos no corredor.

Globe Theater lá na Inglaterra. Aqui é Teatro do Corredor. Igualmente maravilhoso. Nele você também vê o céu, enquanto as pessoas vão virando árvores e os atores vão cantando as bromélias. Zé Celso, como Lula, é um educador. O que ele ensina é o Brasil. Sem nunca ser nacionalista. Vem que tem e ele inclui todas as músicas no ato de romper com as convenções, fazer pouco de Hegel que logo mais vai aparecer. Aguarde. Ouça antes o que os atores dizem sobre "as flores rutilantes quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens". Nós estamos no inferno. A flora é estranha, diz o narrador, capaz de assombrar o maior dos botânicos. Euclydes diz que se perdeu, que nunca lamentou tanto a falta de uma formação prática, formação que o ensinamento acadêmico não deu e não dá. Como não pensar em Lula, que nunca foi à escola e fez pouco de quem foi e se "lixou para os outros". Você sorri para o Brasil, fica orgulhoso de ter nascido aqui.

Por que o Zé quase não entra em cena? Só entra de vez em quando. Porque ele já é o ancestral dessa grande festa que não vai acabar depois dele. Fica meio dentro e meio fora para que o Oficina continue. Para que o ator molhado por uma súbita chuva se meleque rolando na areia e você deseje se molhar e rolar também. Um teatro que é sagrado e é alegre, onde a valsa toca no sertão. Quem disse que não? Hegel? Ó qui. E quem então dança é o umbuzeiro, a árvore sagrada do sertão-paraíso trágico do Brasil.

Entra uma seriema "sem prosa, lamentosa". Você ouve o seu canto triste antes de ouvir que "num ritmo maldito as folhas vão se despegando". Prenúncio da seca. E quem entra no palco é Hegel, de guarda-chuva e capa preta. Diz para Euclydes: "O senhor não classificou essa categoria geográfica. Só é real o que é racional e vice-versa". Ou: "Os homens tem que abrir mão do que não se encontra nas categorias racionais. Sei bem que vocês pisam nessa terra, só que ela não existe". Ora, Hegel! "Sou promíscuo e quero ser barbaramente estéril, maravilhosamente exuberante", responde o sertão. Guerra de foice, antes de entrar em cena o outro agente geológico notável, que Euclydes havia esquecido de mencionar: o homem.

E a peça culmina. Você assiste o rito do homem nu, o índio que apaga o fogo com o próprio corpo, as brasas com a sola dos pés. Medo. Será que este teatro não vai pegar fogo? Pega, simbolicamente com uma foda ao som de um violino. O texto continua: "... As montanhas que me norteiam balizando a marcha das bandeiras em busca do Eldorado". A terra é então simbolizada por uma mulher com quem Euclydes fode ao som de uma sanfona. Depois de ter dito: "Adeus, Bexiga". Referência a Silvio Santos. E os atores começam a apunhalar o chão. Referência também ao drama da terra na modernidade, a Michel Serres, o filósofo francês. Mais internacional do que o Zé não existe. Do que nós brasileiros que comemos alegremente todas as representações. Viva a comilança, o homem que brinca e não o homem que pode se tornar funesto e dar à terra "com a queimada um supletivo de insolação".

No fim o texto se torna satírico: "Não vamos fazer miríades de poços artesianos. Vamos continuar as obras do Minhocão". Pode o Conselheiro não reaparecer? Aparece na porta, encarnado por Zé Celso, vestido de azul, como um anjo, como o céu e ele pergunta: "As tuas mãos? Onde estão?". Pergunta e lambuza as próprias num líquido branco oferecido por um índio nu. É o "esperma do líquen da terra".

Zé Conselheiro sugere que você espectador não seja um Pôncio Pilatos, lambuze, em vez de lavar as mãos. Participe para evitar a massacração. E, assim, seguido pelos 40 atores, ele atravessa pela última vez o corredor e desaparece nos bastidores. Você fica com a imagem de um ator que leva uma placa onde se lê: "Rua Canudos". O silêncio é sagrado. Sacraliza até o barulho do trânsito, a rua Jaceguai e São Paulo, Tão Paulo, Tão.

Betty Millan é escritora e psicanalista, autora de "O Clarão"
 

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