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22/12/2002
-
09h59
da Folha de S.Paulo
Poucos meses depois de engendrar mais um poético emblema no circuito das artes --seus picolés de água vendidos em carrinhos padronizados à porta dos espaços expositivos da Documenta de Kassel (Alemanha)--, o artista carioca Cildo Meireles, 54, prepara novas exposições e define sua busca de singularidade nas artes em confortável contraposição ao rótulo da arte conceitual, à leitura meramente política de suas obras e à sistematização da própria produção: "Eu gosto de artistas que você nunca sabe o que vai ver". Com os trabalhos de Cildo Meireles, é desse modo que tudo se passa.
Em que você está trabalhando atualmente?
Eu tenho uma exposição programada para março de 2003 no Panamá. Originalmente é um projeto cujo foco é a cidade do Panamá, a capital, mas evidentemente eu devo trabalhar em torno da coisa do canal mesmo, que acaba sendo o mais imediatamente associado, mas que tem aspectos interessantes, simbólicos.
Como é a sua rotina de trabalho?
Eu trabalho basicamente como eu sempre trabalhei, ou seja, na verdade você fica caçando relâmpagos.
Como é isso?
É o primeiro momento de qualquer fato que te desperte a atenção, te emocione, te intrigue, que é indefinido, que não tem contornos, quer dizer, volta e meia você está se deparando com essa situação. Eu procuro sempre tomar notas que me possibilitem depois retornar e tentar ir detalhando, aprofundando, tentando encaminhar a coisa para uma formalização. Eu não consigo me inserir em um método. Agora, acho que cada peça tem uma espécie de biografia, tem uma origem, mais ou menos o que foi que deflagrou.
Você defende muito que sua produção possua um caráter anti-representacional e, no entanto, algumas de suas obras mais famosas, como o "Desvio para o Vermelho" (1967) e o "Cruzeiro do Sul" (1969-70), têm uma alta carga simbólica. Como você concilia isso?
Eu acho que o "Cruzeiro do Sul" e o "Desvio para o Vermelho" são bem diferentes conceitualmente. O "Cruzeiro do Sul" tinha essa intenção inicial de ser uma espécie de condensação de símbolos mesmo.
Já o "Desvio" eu vejo de outra maneira, não sei, eu nunca emprestei ao "Desvio" caráter simbólico, para mim ele é muito mais uma espécie de possibilidade poética, no início era isso. Porque, na verdade, esse trabalho tem uma primeira parte, que é de 67, que é exatamente o que eu chamei de "Impregnação", a primeira sala, que ficou durante muito tempo como anotação.
No começo de 82, eu tive um convite de uma curadora americana, do Texas, que queria fazer uma exposição com artistas brasileiros e que pediu que eu fizesse algo de grande escala. Eu fui às notas, tinha essa coisa que não tinha nome e que admitia a possibilidade de que em um dado momento no mesmo espaço por alguma razão alguém tivesse reunido apenas objetos, por exemplo, vermelhos. Era a hipótese.
Além dessa, eu tinha anotações de 78 ou 79, uma descrevendo uma pia inclinada com a torneira aberta e jorrando água, que era um circuito hidráulico fechado; isso era uma coisa autônoma como nota. E tinha uma outra que era uma garrafinha, como se tivesse tombado e, saindo dessa garrafa, uma poça imensa de um líquido colorido ("Entorno"). E eu achei que ficaria interessante juntar essas três coisas em uma única peça porque elas funcionavam, à medida que fui pensando as notas juntas, uma como uma espécie de aparente explicação para a fase anterior do trabalho.
Então você tinha como primeiro dado aquele acúmulo de coisas, aquela coleção de coleções de uma determinada cor, que, num dado seguinte, quando você se defrontasse com a garrafa, essa desproporcionalidade entre continente e conteúdo podia de uma certa maneira explicar simbolicamente o que tinha acontecido.
Você está dizendo então que, na verdade, toda a carga política dessa obra foi um acréscimo posterior da história?
Acho que foi uma leitura, é uma leitura. Eu mesmo disse ao Paulo [Herkenhoff, curador] que compreendia e respeitava a interpretação dele, mas que aquela não era a minha leitura, tanto é que, nas anotações para a garrafa, a poça era azul.
Você já afirmou que a sedução tem de estar presente sempre na obra de arte; a que estava se referindo exatamente e como alcança isso em sua produção?
Não sei se eu alcanço, o objetivo é esse. Eu fui testemunha da situação da chamada arte conceitual no final dos anos 60 e começo dos 70: uma espécie de encaminhamento para um impasse formal, vamos dizer assim, o que é meio paradoxal, mas justamente por uma espécie de abuso de textos, esse verbalismo muito grande.
O que acontecia é que as coisas ficaram chatíssimas, no sentido de que você entrava em uma exposição e, se quisesse vê-la toda, iria demorar um tempo enorme. E eu acho que a questão da sedução passa por aí, eu acho que um dos fascínios de uma obra de artes plásticas é ela te permitir assim uma empatia instantânea, em segundos você pode ser tomado, quer dizer, ela tem que te sequestrar, mesmo que seja por milionésimos de segundos, ela tem que tirar o espectador daquele lugar, daquele tempo. E essa capacidade, eu acho que ela se funda muito também nos aspectos de sedução, de beleza mesmo.
Como você vê este revival no Brasil, no RJ principalmente, da arte conceitual e política dos anos 60 e 70?
Acho que a história da arte é cíclica mesmo; nada mais natural e lógico que, depois de um período, começasse a haver uma retomada. Mas eu durante muito tempo fiquei com uma relação meio estroboscópica, sobretudo com a produção mais nova, pela questão das viagens, você perde coisas que gostaria de ter visto, não dá para acompanhar metodicamente. No momento eu acho que a arte brasileira é sobretudo plural, o que é maravilhoso porque uma cena hegemônica é sempre pobre. A riqueza vai vir sempre das diferentes produções contemporâneas coexistindo, isso é que cria uma cena forte. E desse ponto de vista eu acho que a arte brasileira está muito bem, já há algum tempo.
Quem são os artistas que você gosta de ver?
[Bruce] Nauman é um artista que é interessante... Eu gosto de artistas que você nunca sabe o que vai ver. Por exemplo, tem artistas cujo trabalho eu respeito, tem solidez, tem qualidade, tem coerência, tem história, mas que, pô, dificilmente vão me surpreender outra vez, como o [Joseph] Kosuth, eu acho legal, mas, tudo bem... Já o Nauman, nesse sentido, é mais surpreendente, me interessa. O Walter De Maria é um artista de que eu gosto muitíssimo. Agora, tem um que eu gosto muito, que eu acho o grande artista americano vivo, que é o Chris Burden. Às vezes o trabalho dá todo errado, mas, quer dizer, tem sempre essa coisa de tentar expandir o campo, correr esse risco. Tem uma artista inglesa chamada Ceal Floyer, que está na faixa dos 30 anos e faz umas coisas assim de uma economia extrema e de muito impacto.
Artista carioca defende que a arte deve seduzir
JULIANA MONACHESIda Folha de S.Paulo
Poucos meses depois de engendrar mais um poético emblema no circuito das artes --seus picolés de água vendidos em carrinhos padronizados à porta dos espaços expositivos da Documenta de Kassel (Alemanha)--, o artista carioca Cildo Meireles, 54, prepara novas exposições e define sua busca de singularidade nas artes em confortável contraposição ao rótulo da arte conceitual, à leitura meramente política de suas obras e à sistematização da própria produção: "Eu gosto de artistas que você nunca sabe o que vai ver". Com os trabalhos de Cildo Meireles, é desse modo que tudo se passa.
Em que você está trabalhando atualmente?
Eu tenho uma exposição programada para março de 2003 no Panamá. Originalmente é um projeto cujo foco é a cidade do Panamá, a capital, mas evidentemente eu devo trabalhar em torno da coisa do canal mesmo, que acaba sendo o mais imediatamente associado, mas que tem aspectos interessantes, simbólicos.
Como é a sua rotina de trabalho?
Eu trabalho basicamente como eu sempre trabalhei, ou seja, na verdade você fica caçando relâmpagos.
Como é isso?
É o primeiro momento de qualquer fato que te desperte a atenção, te emocione, te intrigue, que é indefinido, que não tem contornos, quer dizer, volta e meia você está se deparando com essa situação. Eu procuro sempre tomar notas que me possibilitem depois retornar e tentar ir detalhando, aprofundando, tentando encaminhar a coisa para uma formalização. Eu não consigo me inserir em um método. Agora, acho que cada peça tem uma espécie de biografia, tem uma origem, mais ou menos o que foi que deflagrou.
Você defende muito que sua produção possua um caráter anti-representacional e, no entanto, algumas de suas obras mais famosas, como o "Desvio para o Vermelho" (1967) e o "Cruzeiro do Sul" (1969-70), têm uma alta carga simbólica. Como você concilia isso?
Eu acho que o "Cruzeiro do Sul" e o "Desvio para o Vermelho" são bem diferentes conceitualmente. O "Cruzeiro do Sul" tinha essa intenção inicial de ser uma espécie de condensação de símbolos mesmo.
Já o "Desvio" eu vejo de outra maneira, não sei, eu nunca emprestei ao "Desvio" caráter simbólico, para mim ele é muito mais uma espécie de possibilidade poética, no início era isso. Porque, na verdade, esse trabalho tem uma primeira parte, que é de 67, que é exatamente o que eu chamei de "Impregnação", a primeira sala, que ficou durante muito tempo como anotação.
No começo de 82, eu tive um convite de uma curadora americana, do Texas, que queria fazer uma exposição com artistas brasileiros e que pediu que eu fizesse algo de grande escala. Eu fui às notas, tinha essa coisa que não tinha nome e que admitia a possibilidade de que em um dado momento no mesmo espaço por alguma razão alguém tivesse reunido apenas objetos, por exemplo, vermelhos. Era a hipótese.
Além dessa, eu tinha anotações de 78 ou 79, uma descrevendo uma pia inclinada com a torneira aberta e jorrando água, que era um circuito hidráulico fechado; isso era uma coisa autônoma como nota. E tinha uma outra que era uma garrafinha, como se tivesse tombado e, saindo dessa garrafa, uma poça imensa de um líquido colorido ("Entorno"). E eu achei que ficaria interessante juntar essas três coisas em uma única peça porque elas funcionavam, à medida que fui pensando as notas juntas, uma como uma espécie de aparente explicação para a fase anterior do trabalho.
Então você tinha como primeiro dado aquele acúmulo de coisas, aquela coleção de coleções de uma determinada cor, que, num dado seguinte, quando você se defrontasse com a garrafa, essa desproporcionalidade entre continente e conteúdo podia de uma certa maneira explicar simbolicamente o que tinha acontecido.
Você está dizendo então que, na verdade, toda a carga política dessa obra foi um acréscimo posterior da história?
Acho que foi uma leitura, é uma leitura. Eu mesmo disse ao Paulo [Herkenhoff, curador] que compreendia e respeitava a interpretação dele, mas que aquela não era a minha leitura, tanto é que, nas anotações para a garrafa, a poça era azul.
Você já afirmou que a sedução tem de estar presente sempre na obra de arte; a que estava se referindo exatamente e como alcança isso em sua produção?
Não sei se eu alcanço, o objetivo é esse. Eu fui testemunha da situação da chamada arte conceitual no final dos anos 60 e começo dos 70: uma espécie de encaminhamento para um impasse formal, vamos dizer assim, o que é meio paradoxal, mas justamente por uma espécie de abuso de textos, esse verbalismo muito grande.
O que acontecia é que as coisas ficaram chatíssimas, no sentido de que você entrava em uma exposição e, se quisesse vê-la toda, iria demorar um tempo enorme. E eu acho que a questão da sedução passa por aí, eu acho que um dos fascínios de uma obra de artes plásticas é ela te permitir assim uma empatia instantânea, em segundos você pode ser tomado, quer dizer, ela tem que te sequestrar, mesmo que seja por milionésimos de segundos, ela tem que tirar o espectador daquele lugar, daquele tempo. E essa capacidade, eu acho que ela se funda muito também nos aspectos de sedução, de beleza mesmo.
Como você vê este revival no Brasil, no RJ principalmente, da arte conceitual e política dos anos 60 e 70?
Acho que a história da arte é cíclica mesmo; nada mais natural e lógico que, depois de um período, começasse a haver uma retomada. Mas eu durante muito tempo fiquei com uma relação meio estroboscópica, sobretudo com a produção mais nova, pela questão das viagens, você perde coisas que gostaria de ter visto, não dá para acompanhar metodicamente. No momento eu acho que a arte brasileira é sobretudo plural, o que é maravilhoso porque uma cena hegemônica é sempre pobre. A riqueza vai vir sempre das diferentes produções contemporâneas coexistindo, isso é que cria uma cena forte. E desse ponto de vista eu acho que a arte brasileira está muito bem, já há algum tempo.
Quem são os artistas que você gosta de ver?
[Bruce] Nauman é um artista que é interessante... Eu gosto de artistas que você nunca sabe o que vai ver. Por exemplo, tem artistas cujo trabalho eu respeito, tem solidez, tem qualidade, tem coerência, tem história, mas que, pô, dificilmente vão me surpreender outra vez, como o [Joseph] Kosuth, eu acho legal, mas, tudo bem... Já o Nauman, nesse sentido, é mais surpreendente, me interessa. O Walter De Maria é um artista de que eu gosto muitíssimo. Agora, tem um que eu gosto muito, que eu acho o grande artista americano vivo, que é o Chris Burden. Às vezes o trabalho dá todo errado, mas, quer dizer, tem sempre essa coisa de tentar expandir o campo, correr esse risco. Tem uma artista inglesa chamada Ceal Floyer, que está na faixa dos 30 anos e faz umas coisas assim de uma economia extrema e de muito impacto.
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