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31/12/2002 - 03h31

Diretor japonês fala sobre "Dolls", seu mais recente longa

ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

"E como vai Lula?", pergunta a intérprete francesa de Takeshi Kitano quando a Folha se apresenta para a entrevista com o cineasta japonês. "Lu-la?", repete Kitano. A intérprete explica: "É o político de esquerda que foi eleito no Brasil". Kitano solta uma exclamação forte, como um samurai de Kurosawa: "Ôoooà". E diz: "No Japão, eles mandam matar todos os políticos de esquerda".

É o lado Beat Takeshi que está falando no diretor. Beat é o apelido de Kitano na televisão japonesa, da qual ele é talvez o apresentador mais famoso de todos os tempos. Sua relação com a TV começou no fim dos anos 70, quando participou de atrações de humor e escracho. Virou um cult entre diferentes gerações. Nos últimos anos, fez desde recreações de auditório, em que se vestia de mocinha ou tirava a roupa, até "talk show" político e programas sobre arte, como "Todos Podem Ser Picasso", que comanda há seis anos.

Kitano, 55, é o rei do "geinokai" (mundo do entretenimento). Mas é também escritor, pintor, ator de prestígio e o principal diretor de cinema do país hoje. Em 1997, ganhou o Leão de Ouro em Veneza com "Hana-Bi", em que fazia o papel principal. Foi a consagração internacional de sua poética cinematográfica, marcada pela convergência de um extremado lirismo com a violência mais crua.

Em 2002, Kitano mostrou no mesmo festival seu filme mais recente, "Dolls" (que esteve na 26ª Mostra BR de Cinema, em SP, mas ainda não tem data de estréia no país). A tradução literal é "bonecas", mas talvez seja apropriado verter como "marionetes". O entusiasmo da crítica em Veneza foi enorme, mas o júri fechou os olhos para Kitano. Para as entrevistas em Paris sobre o filme, em novembro, pintou os cabelos de branco. "Queria ser um panda."

É um sujeito forte, energético e bem-humorado. Na aparência, o contrário de um urso: por vezes lembra um tigre, noutras, uma serpente. Devido a um acidente em 94, sua face direita tem leve paralisia, o que lhe dá um ar sinistro, perfeito à encarnação de bandidos no cinema, o que já fez, incorporando personagens ligados à Yakuza, a máfia japonesa tantas vezes retratada em seus filmes.

Há um membro da Yakuza em seu novo filme, mas "Dolls" não trata da máfia nem dos crimes de ocasião: é radical, suntuoso e quase experimental sobre o amor e a morte, para ser sucinto. Kitano considera-o, no entanto, o seu trabalho mais violento no cinema. "Ele tem uma violência menos aparente, mas igualmente devastadora: a provocada pelas emoções e passagem do tempo."

São três histórias paralelas, sobre três casais. Na primeira, a mais desesperada, um rapaz desiste na última hora do casamento arranjado pelos pais e vai ao encontro da amada, que tentou suicídio por causa dele. A moça jamais se recuperará. Ao sair do hospital, passa a vagar silenciosa, distante e enlouquecida, sempre seguida pelo moço, que acaba por apresentar os mesmos sintomas de alheamento. Os dois seguirão pelas ruas do Japão, ligados por uma corda vermelha, como fantasmas de um conto trágico.

A segunda história, a mais contemporânea, fala da devoção de um fã por uma "popstar", que, após sofrer um acidente, retira-se para uma praia afastada, onde passa os dias a mirar o oceano. Na terceira, a mais comovente, um velho membro da Yakuza resolve voltar, 30 anos depois, ao parque onde sempre encontrava, aos sábados, a namorada. Para sua surpresa, ela está lá. Por 30 anos, desde que ele desapareceu sem dar notícia, abandonando sua vida de operário para se associar à máfia, a namorada nunca deixou de retornar ao parque, no mesmo dia da semana, no mesmo horário.

Kitano conta que as histórias são baseadas em fragmentos de sua vida. Na infância, ficou impressionado com um casal de mendigos que caminhavam sem destino, amarrados um ao outro por uma corda. Quando se acidentou em 1994, sofrendo paralisia facial, diz que viveu experiência parecida à da "popstar" de seu filme. E ele também abandonou uma namorada no passado ao decidir pela carreira de ator.

A extrema objetividade do diretor transforma essas rememorações em ícones complexos onde o Japão contemporâneo se confunde, como nunca no cinema de Kitano, com a tradição narrativa, teatral e visual do país. A pintura clássica japonesa é evocada e transfigurada nos planos, numa convergência encantadora com a arte pop -o que o artista Takashi Murakami poderia chamar de um exemplo acabado de "pós-japonismo" no cinema.

O filme é, além disso, inspirado no bunraku, antigo teatro de marionetes, e na obra de seu maior dramaturgo, Monzaemon Chikamatsu (1653-1724), chamado de "Shakespeare do Oriente", cujas histórias Mizoguchi levou às telas em "Amantes Crucificados" (1954). "Minha avó cantava no bunraku, em que as histórias tratam de amores impossíveis, como as que conto no filme. Meus personagens são como marionetes transformadas em humanos."
 

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