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11/08/2000
-
05h26
TIAGO MATA MACHADO, da Folha de S.Paulo
Se, nos anos 60, Ruy Guerra inscreveu-se entre os mais modernos diretores do cinema novo, isso se deve especialmente à sua condição de estrangeiro.
Essa situação abrigava o cineasta das contingências políticas brasileiras, das intempéries que levavam os cinemanovistas a redimensionarem rumos de acordo com os novos ventos e a se apegarem a um certo ranço de oportunismo político do qual nem Glauber Rocha escapou.
Mais do que isso, tal condição inspirava as perambulações do cinema de Guerra e filiava, afinal, "os cafajestes" brasileiros aos errantes personagens da modernidade cinematográfica.
"Estorvo", seu mais recente filme, também se encontra nesse descaminho. "Não estou entrando em lugar nenhum, mas saindo de todos os outros", propala seu protagonista. Guerra, mais do que nunca, faz-se aqui um estrangeiro. A cena em que seu alter ego (Jorge Perugorría) conversa, quando criança, e em portunhol, com sua irmã brasileira, talvez seja a que melhor ilustre a relação, indizível e incestuosa, que Guerra mantém com a cultura brasileira.
O portunhol é a língua de seu continente luso-afro-brasileiro, sua terra de ninguém. "Não são brasileiros, são ruyguerreanos aqui e acolá", dizia Glauber Rocha. Mas se os ruyguerreanos de outrora ainda tinham a potência nietzschiana e a macheza revolucionária e suicida dos heróis cinemanovistas que o próprio Guerra encarnava quando se juntava à patotinha da pesada formada por Daniel Filho, Hugo Carvana e Jece Valadão, os de hoje mais se assemelham a párias sociais.
São machos em fuga, acuados, impotentes. O personagem de Perugorría não é senão a encarnação da falência masculina, e o seu melhor amigo a do desencanto no romance de Chico Buarque. Esse amigo é um poeta que lhe ensina a língua do "desesperanto".
O delírio utópico cede lugar à catatonia paranóica. E será destituído de esperança que nosso herói embarcará numa dantesca jornada, deparando-se com um povo miserável e grotesco cuja deformidade não será nada mais do que o reflexo de uma elite abjeta, encastelada em seus vícios.
Natural que sua perambulação resulte inútil, que sua viagem seja imóvel e seus pontos de fuga se façam inalcançáveis. Ele estará sempre voltando ao mesmo centro vazio que é o próprio cerne do imobilismo que ronda a nós, latino-americanos. Filiado a tantos outros personagens "suspensos no nada" da tradição literária ocidental, o personagem de Buarque faz Guerra recuperar, para o contexto da urbanidade contemporânea, aquela que era a característica central dos protagonistas dos filmes modernos: a vidência.
A possibilidade de reagir à situação, a concepção do cinema como arte revolucionária das massas era, de certa forma (e muito justamente, devido ao contexto brasileiro e terceiro-mundista), um ranço que o cinema novo legara do cinema clássico. Mas a infatigável e torturada fabulação do povo brasileiro que Glauber engendrara era um sonho, e "Estorvo" é o pesadelo de sua realidade.
"Vigilâmbulo" como os personagens modernos do pós-guerra, o protagonista de "Estorvo" é incapaz de reagir frente ao intolerável da realidade que ele, tornado vidente (pelo prisma do "olho mágico" de Buarque), agora percebe.
Se Guerra é capaz de se apegar, com extrema fidelidade, ao olhar de Buarque, e por ele chegar mesmo a sacrificar o seu filme, é por uma afinidade sem preço, por uma opção, afinal, puramente autoral. Sim, o fracasso é a verdade desse filme, de seu personagem e de toda a geração que ele representa. Mas é preciso, mais do que nunca, defender esse fracasso.
Não se trata aqui de predizer o fracasso comercial do filme, mas apenas de celebrar a coragem de Guerra na realização dessa obra que, se me perdoam o trocadilho, permanecerá um estorvo para a maioria dos críticos e realizadores do cinema nacional que, em sua capitulação mercadológica, continuam a negar o melhor da cinematografia brasileira (seu legado moderno) em nome da estandardização globalizante (a conspiração dos clichês), consagrada pelos grandes festivais internacionais como o de Cannes.
Estorvo
Direção: Ruy Guerra
Produção: Brasil, 2000
Com: Jorge Perugorría, Bianca Byington
Quando: a partir de hoje no cine Belas Artes e no Cine Arte Lilian Lemmertz
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Crítica: Ruy Guerra faz pesadelo dos sonhos de Glauber
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Se, nos anos 60, Ruy Guerra inscreveu-se entre os mais modernos diretores do cinema novo, isso se deve especialmente à sua condição de estrangeiro.
Essa situação abrigava o cineasta das contingências políticas brasileiras, das intempéries que levavam os cinemanovistas a redimensionarem rumos de acordo com os novos ventos e a se apegarem a um certo ranço de oportunismo político do qual nem Glauber Rocha escapou.
Mais do que isso, tal condição inspirava as perambulações do cinema de Guerra e filiava, afinal, "os cafajestes" brasileiros aos errantes personagens da modernidade cinematográfica.
"Estorvo", seu mais recente filme, também se encontra nesse descaminho. "Não estou entrando em lugar nenhum, mas saindo de todos os outros", propala seu protagonista. Guerra, mais do que nunca, faz-se aqui um estrangeiro. A cena em que seu alter ego (Jorge Perugorría) conversa, quando criança, e em portunhol, com sua irmã brasileira, talvez seja a que melhor ilustre a relação, indizível e incestuosa, que Guerra mantém com a cultura brasileira.
O portunhol é a língua de seu continente luso-afro-brasileiro, sua terra de ninguém. "Não são brasileiros, são ruyguerreanos aqui e acolá", dizia Glauber Rocha. Mas se os ruyguerreanos de outrora ainda tinham a potência nietzschiana e a macheza revolucionária e suicida dos heróis cinemanovistas que o próprio Guerra encarnava quando se juntava à patotinha da pesada formada por Daniel Filho, Hugo Carvana e Jece Valadão, os de hoje mais se assemelham a párias sociais.
São machos em fuga, acuados, impotentes. O personagem de Perugorría não é senão a encarnação da falência masculina, e o seu melhor amigo a do desencanto no romance de Chico Buarque. Esse amigo é um poeta que lhe ensina a língua do "desesperanto".
O delírio utópico cede lugar à catatonia paranóica. E será destituído de esperança que nosso herói embarcará numa dantesca jornada, deparando-se com um povo miserável e grotesco cuja deformidade não será nada mais do que o reflexo de uma elite abjeta, encastelada em seus vícios.
Natural que sua perambulação resulte inútil, que sua viagem seja imóvel e seus pontos de fuga se façam inalcançáveis. Ele estará sempre voltando ao mesmo centro vazio que é o próprio cerne do imobilismo que ronda a nós, latino-americanos. Filiado a tantos outros personagens "suspensos no nada" da tradição literária ocidental, o personagem de Buarque faz Guerra recuperar, para o contexto da urbanidade contemporânea, aquela que era a característica central dos protagonistas dos filmes modernos: a vidência.
A possibilidade de reagir à situação, a concepção do cinema como arte revolucionária das massas era, de certa forma (e muito justamente, devido ao contexto brasileiro e terceiro-mundista), um ranço que o cinema novo legara do cinema clássico. Mas a infatigável e torturada fabulação do povo brasileiro que Glauber engendrara era um sonho, e "Estorvo" é o pesadelo de sua realidade.
"Vigilâmbulo" como os personagens modernos do pós-guerra, o protagonista de "Estorvo" é incapaz de reagir frente ao intolerável da realidade que ele, tornado vidente (pelo prisma do "olho mágico" de Buarque), agora percebe.
Se Guerra é capaz de se apegar, com extrema fidelidade, ao olhar de Buarque, e por ele chegar mesmo a sacrificar o seu filme, é por uma afinidade sem preço, por uma opção, afinal, puramente autoral. Sim, o fracasso é a verdade desse filme, de seu personagem e de toda a geração que ele representa. Mas é preciso, mais do que nunca, defender esse fracasso.
Não se trata aqui de predizer o fracasso comercial do filme, mas apenas de celebrar a coragem de Guerra na realização dessa obra que, se me perdoam o trocadilho, permanecerá um estorvo para a maioria dos críticos e realizadores do cinema nacional que, em sua capitulação mercadológica, continuam a negar o melhor da cinematografia brasileira (seu legado moderno) em nome da estandardização globalizante (a conspiração dos clichês), consagrada pelos grandes festivais internacionais como o de Cannes.
Estorvo
Direção: Ruy Guerra
Produção: Brasil, 2000
Com: Jorge Perugorría, Bianca Byington
Quando: a partir de hoje no cine Belas Artes e no Cine Arte Lilian Lemmertz
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