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01/02/2003 - 02h40

Faltam intelectuais que resistam à tentação de serem tribunos

NELSON ASCHER
da Folha de S. Paulo

Faz 5.000, talvez 6.000 anos que alguém inventou pela primeira vez uma maneira efetiva de converter sons audíveis em imagens visíveis. Isso pode ter acontecido às margens do Eufrates ou do Nilo, no subcontinente indiano ou na China.

No começo, quem sabe, tratava-se apenas de alguma marca inscrita num osso ou numa pedra, e servia seja como indicação do nome da pessoa cujo destino se buscava adivinhar, seja como registro do número de ovelhas que pertenciam ao chefe local.

Poucas inovações, no entanto, alteraram tão profundamente os hábitos do ser humano ou potencializaram tanto suas aptidões. As invenções, na sua maioria, são corretamente vistas como dispositivos capazes, por exemplo, de fortalecer o braço ou tornar mais rápida a perna : elas intensificam ou melhoram quantitativamente algo que o corpo faz.

A escrita, no entanto, tomou a comunicação, que consistia em moldar, com as cordas vocais e a língua, mensagens efêmeras compostas de ondas sonoras que seriam recebidas pelo ouvido, e transformou-as em algo que, saindo das mãos ou da ponta dos dedos, seria captado pelos olhos.

Que as mensagens pudessem ser gravadas em materiais mais duradouros tornou-as transmissíveis através de outra escala de tempo e de espaço.

Graças não só ao poder que ela conferia, mas provavelmente também devido a associações antigas com a esfera religiosa, resíduos de seu caráter mágico, mesmo numa era de alfabetização quase universal (no hemisfério Norte), preservam-se até hoje.

Apesar de todo o debate a respeito dos meios de comunicação, das imagens eletro-eletrônicas, do universo digital, a capacidade de escrever ainda merece respeito e veneração. Quase ninguém mais lê poesia, mas chamar alguém, sem ironia, de escritor ou poeta equivale tanto a designar seu ramo de atividade como a lhe atribuir, como milênios atrás, um título honorífico.

É isto apenas que explica um fato paradoxal. Há pessoas que, embora capazes de criar uma imagem surpreendente, de reformular de forma inesperada um lugar-comum ou de expressar com elegância tal ou qual banalidade, nem assim seriam ouvidas na hora de consertar um motor ou cozinhar um guisado.
Porém, quando, às vésperas de uma eleição, de uma guerra ou após uma revolução ou terremoto, elas se manifestam, grandes platéias habitualmente céticas as levam totalmente a sério.

Não é porque um sujeito escreveu um soneto amoroso decente ou um romance policial legível que suas opiniões a respeito da dívida interna ou da diplomacia internacional são automaticamente idiotas. Se o século passado sugere algo, contudo, é que a possibilidade de tanto o talento literário quanto o equívoco político escorrerem de uma mesma pena nada tem de baixa : pelo contrário.

Não houve, nos últimos cem anos, um tirano, um sistema totalitário ou regime autoritário, uma utopia assassina nem uma ideologia sádica que não tenha sido cantada pelos melhores escritores da época. Quanto maior a quantidade de grandes nomes num abaixo-assinado qualquer, maior a chance de que os efeitos de sua realização sejam desastrosos.

Por alguma razão não necessariamente misteriosa, o sistema político menos apreciado nos meios artísticos tem sido a democracia pura e simples. Para cada George Orwell, disposto a defender idéias impopulares entre seus pares, houve centenas de Nerudas e Pounds celebrando stalinismo e fascismo. O que mais tem faltado e ainda falta são os intelectuais que, reconhecendo que suas opiniões não são a priori nem melhores nem piores do que as de quem quer que seja, mostrem-se capazes de resistir à tentação de serem tribunos tanto faz de que causa, pois todas as causas que lhes acenam com esse papel são suspeitas.
 

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