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17/08/2000 - 04h30

Documentários mostram um outro povo brasileiro

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MARIO SERGIO CONTI, da Folha de S.Paulo

O povo brasileiro costuma aparecer na televisão quando a chuva derruba o barraco, o rapa baixa o sarrafo em camelôs, mães se desesperam no portão de uma unidade rebelada da Febem, a torcida se esgoela numa final de campeonato, ou quando curiosos cercam cadáveres de chacinados numa periferia.

Na condição de notícia, o povo mal pode falar mais de dez segundos na TV. É sempre um repórter que explica a inundação, a repressão policial, a revolta, o júbilo, o assassinato. Nos poucos segundos em que aparece no vídeo, quase só dá para perceber que o povo brasileiro é pobre. Como ele mora e trabalha, como se diverte e reza, o que pensa e sonha raramente são assuntos do telejornalismo nacional.

Agora, o povo tem vez e voz na TV. Todos os dias até segunda-feira, dia 21, e depois esporadicamente, durante nove meses, o canal pago GNT estará exibindo a série "6 Histórias Brasileiras". Produzida pela VideoFilmes, ela reuniu três documentaristas sem experiência na imprensa escrita e quatro jornalistas que nunca haviam trabalhado na televisão.

O que eles conseguiram é espantoso: mostrar com objetividade, sem folclorização ou complacência, seis aspectos da vida popular brasileira.
Os temas dos programas, cada um com cerca de uma hora de duração, são uma família da periferia paulistana, a decadência do Vale do Paraíba, a migração interna, um dia na vida de cinco trabalhadores, o surgimento de uma igreja evangélica e a preparação de um desfile de escola de samba.

"A experiência de colaborar com jornalistas foi a mais fértil em minha carreira de 15 anos de documentarista", diz João Moreira Salles, 38, sócio da VideoFilmes e diretor de "Notícias de uma Guerra Particular".

A série, que teve um custo estimado em R$ 2,1 milhões, nasceu do encontro de Salles com Marcos Sá Corrêa, 53, ex-diretor do "Jornal do Brasil" e "O Dia" e hoje editor da revista digital "No.com.br". O objetivo dos dois era contar histórias de brasileiros que não são notícia.

"O Vale"

Sá Corrêa e Salles fizeram juntos dois dos documentários. Em "O Vale", eles mostram o que sobrou, em termos humanos e ambientais, da devastação da mata atlântica às margens do rio Paraíba, no Rio de Janeiro. Aparecem descendentes de riquíssimos barões do café que hoje vivem em fazendas arruinadas. Um deles se sustenta vendendo ovos de porta em porta, mas ainda se orgulha do guarda-chuva francês que recebeu de herança. Outro cria porcos dentro de uma piscina vazia.

São imagens com um quê de surreal, captadas com uma câmera de mão oscilante, como que para mostrar uma região à deriva, decadente. Ali, uma fazenda de 200 alqueires gera uma renda mensal de R$ 400. No Vale do Paraíba o solo se exauriu, não há grão que viceje.

As imagens contrastam com textos, projetados no vídeo, de fazendeiros, biólogos e governantes do século 19, todos eles anunciando que se a mata fosse derrubada viria fatalmente o desastre ambiental. De nada adiantaram os alertas. A floresta se tornou terra estéril.

"Santa Cruz"

Salles e Sá Corrêa partiram em seu outro documentário, "Santa Cruz", de uma pergunta: por que as seitas evangélicas, tão restritivas em suas proibições ao álcool, à participação no Carnaval e até a assistir jogos de futebol, têm tanto apelo junto à população que não tem nada, os pobres?

Eles filmaram durante oito meses o nascimento e a consolidação de uma igreja pentecostal, a Casa de Oração Jesus é o General, num loteamento clandestino do subúrbio de Santa Cruz, no Rio, possivelmente um dos lugares mais feios do mundo.

Dirigida por um ex-metalúrgico transformado em pastor, o templo se firma porque oferece aos moradores o que inexiste em Santa Cruz: ordem em meio à anarquia, convívio social num arrabalde onde todos são anônimos, fiapos de civilização (a Bíblia, a solidariedade religiosa, o terno de domingo) num ambiente de miséria bárbara.

"Os carentes de Santa Cruz têm carência de ordem", resume Sá Corrêa.
Os seis documentários foram maturados em nove meses de discussões. Decidiu-se que duplas de documentaristas e jornalistas contariam histórias com um mínimo de narração.

Essa concepção geral deriva do "cinema verdade", estilo de documentário surgido nos Estados Unidos nos anos 60. Nessa escola, os diretores tentam interferir o mínimo possível na conduta de seus personagens, deixando que as declarações deles encadeiem a trama.

Nem por isso a perspectiva dos autores deixa de existir. Os documentários de Marcos Sá Corrêa e João Salles, por exemplo, problematizam os seus temas. Os apelos racionais, demonstram eles em "O Vale", não impediram que a dinâmica econômica e social dizimasse uma região rica. Céticos, eles encerram o documentário notando que a mesma engrenagem predatória hoje esteriliza a Amazônia.

Em "Santa Cruz", a dupla deixa claro que os benefícios civilizatórios propiciados pelos evangélicos têm um custo em termos de perpetuação da ignorância e do fanatismo.

"Um Dia Qualquer"

Já Izabel Jaguaribe, 32, e Zuenir Ventura, 69, optaram por um enfoque otimista e celebratório em "Um Dia Qualquer". A co-diretora de "Memórias de um Sargento de Milícias" e o colunista da revista "Época" e de "O Globo" contam com entusiasmo um dia de trabalho na vida de cinco cariocas.

A alegria é a nota dominante dos cinco personagens: uma dançarina de shows para turistas, um motorista de ônibus, um office-boy, um vendedor de abacaxi na praia de Copacabana e uma empregada doméstica grávida.
Eles se divertem com o trabalho, numa paisagem de um Rio de Janeiro deslumbrante e acolhedor.

Ao mostrar o parto da empregada doméstica, "Um Dia Qualquer" calca a mão na tecla da esperança: mesmo com dificuldades materiais, a vida continua. É uma visão gasta, se bem que disseminada de alto a baixo na sociedade brasileira.

"Ensaio Geral"

Não há visões surradas sobre o Carnaval, sempre festejado como a apoteose luxuriante da alegria popular, em "Ensaio Geral". O documentarista Arthur Fontes, 36, diretor de "Futebol", e o jornalista Flávio Pinheiro, 52, criador da revista "Veja Rio" e hoje editor de "No.com.br", nele investigam os bastidores e a linha de frente do Carnaval.

O documentário flagra com distanciamento os dez meses de preparação do desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel. Ele sublinha a influência dos bicheiros na escola. Expõe a encarniçada disputa pela escolha do samba-enredo, na qual são feitas ameaças de morte. Esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semi-despidas na passarela, que atraem as câmeras da televisão.

"Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios. O Carnaval surge como produto de um trabalho estafante, fragmentado, mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.

"Passageiros"

Em virtude talvez do próprio tema, "Passageiros", que focaliza a vida de migrantes do Piauí, é o documentário de linguagem mais conturbada da série. O seu fio condutor é a viagem de 34 migrantes, feita num ônibus clandestino durante três dias, pelos 3.200 km de estrada que ligam São Paulo à cidade de Pedro 2º, no interior do Piauí.

Realizado por Izabel Jaguaribe e Dorrit Harazim, 57, ex-redatora-chefe de "Veja", "Passageiros" às vezes precisa de legendas para tornar mais claro o que alguns migrantes dizem, tal a esquisitice do sotaque deles. O desentendimento parece mimetizar a incompreensão de migrantes piauienses em relação a São Paulo.

Num país onde metade dos adultos não vive onde nasceu, "Passageiros" capta uma modificação recente do movimento migratório. O migrante não abandona mais sua cidade para não mais voltar. Ele parte rumo à cidade grande, se desilude, retorna ao lugar de origem, novamente não encontra perspectivas e volta outra vez à metrópole. É um universo circular, cujo motor é o desencantamento, diz "Passageiros".

"A Família Braz"

Se "6 Histórias Brasileiras" se propõe a ser um retrato multifacetado da vida popular, um dos documentários vai no sentido contrário. Em "A Família Braz", de Dorrit Harazim e Arthur Fontes, a ambição é condensar uma típica família urbana brasileira.

Uma ambição temerária: o típico muitas vezes não é representativo e frequentemente descamba para a caricatura; e como representar o todo nacional numa quadra histórica em que a dilaceração predomina?
Dorrit Harazim muniu-se de dados estatísticos e constatou que o seu alvo em potencial estaria na periferia paulistana. Visitou cerca de 20 famílias. Concentrou-se então na Vila Brasilândia, onde descobriu Antonio e Maria Braz e seus quatro filhos.

Por serem negros, os Braz estão fora do grupo populacional majoritário (o dos "pardos", conforme a classificação do IBGE). Também têm mais filhos do que a maioria da população (hoje entre dois e três, na média). Mas, como a renda familiar dos Braz é de cerca de R$ 1.220 reais mensais, foram eles os escolhidos.

A família foi também escolhida porque tem um Monza velho, televisão, celular, geladeira, aparelho de som e vive numa casa pequena. E porque tem de lidar com o desemprego, o preconceito, o banditismo, a precariedade dos serviços públicos e toda sorte de obstáculos à ascensão social.

Foi uma escolha feliz até no significante: Brasil, Brasilândia, Braz, brasileiros. Durante quase um mês, o documentarista e a jornalista acompanharam a família, dentro e fora de sua casa. Em torno dela gravitam grandes temas nacionais: a pobreza, o trabalho, o racismo, a educação, o lazer, o tráfico de drogas, a sociabilidade, o alcoolismo, a solidariedade.

Tais temas, tornados palpáveis na vida dos Braz, adquirem uma força de síntese que se costuma encontrar apenas em obras de arte. É por isso que "A Família Braz" tem potencial para se tornar um clássico da televisão brasileira - um meio em que a própria noção de "clássico" é um paradoxo, tal a vulgaridade e comercialismo que nela imperam.

O pedreiro Antonio Braz recebeu a fita com o documentário que retrata a vida de sua família. Já o assistiu 11 vezes. Como "6 Histórias" está sendo exibido num canal a cabo, e só no próximo ano será mostrado por uma emissora educativa, a Rede Cultura, Antonio Braz é um dos poucos pobres que pôde assisti-lo.

O povo agora tem vez e voz num canal para ricos. Mas ainda não pode se ver na televisão gratuita.

HOJE, no GNT: "Um Dia Qualquer", às 23h, e reprises de "Passageiros", às 13h e às 18h30

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