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17/05/2003 - 06h42

Rodapé: Um dialeto visionário

MANUEL DA COSTA PINTO
colunista da Folha

"As palavras ordenadas de maneira diversa fazem um sentido diverso. E os sentidos diversamente ordenados fazem diferentes efeitos." Esse aforismo de Pascal certamente vale para toda forma de linguagem: é o modo como uma palavra se relaciona com outras no interior de uma sentença ou de um ato discursivo que determina seu valor semântico, que por isso tende a ser instável, circunscrito. Mas em nenhum outro tipo de linguagem essa singularidade é tão ostensiva quanto na poesia, em que o sentido de cada palavra e os efeitos de cada sentido pertencem a um dialeto pessoal do poeta.

É necessário compreender esse caráter "dialetal" da poesia para ler um livro como "Horizonte de Eventos", de Sergio Cohn. Paulista radicado no Rio de Janeiro, onde dirige a revista "Azougue" e uma editora com o mesmo nome, Cohn estreou em 1999 com o livro "Lábio dos Afogados" (Nankin) e vem realizando um trabalho que representa uma vertente pouco conhecida da poesia brasileira.

Como observa Bruno Zeni no posfácio do livro, em Cohn "a leitura dos herdeiros brasileiros do surrealismo e da geração beat, como Roberto Piva, Claudio Willer, Rodrigo de Haro, Jorge Mautner e Afonso Henriques Neto, se conjuga com a de poetas que mantêm um trabalho mais contido e filosófico como Rubens Rodrigues Torres Filho, Paulo Henriques Brito e, mais recentemente, Alberto Pucheu e Claudio Daniel".

Para leitores acostumados com as principais linhas de força de nossa poesia, esse elenco de nomes dá uma idéia de como Sergio Cohn dialoga com uma linhagem diferente, que escapa tanto ao eixo lírico representado por Mário de Andrade-Bandeira-Drummond quanto ao eixo objetivo, mais experimental, representado por Oswald de Andrade, João Cabral e o concretismo.

Como qualquer jovem poeta, Sergio Cohn é certamente tributário de uma tradição literária em que a expressividade sempre foi controlada pelo rigor formal, pela precisão vocabular e por um coloquialismo anti-retórico. Um exemplo dessa dívida está no poema "Ars Poetica", que é uma espécie de programa estético do livro: "Uma elipse é o modo/ em que vejo os mais belos/ poemas aparecerem/ num quase transbordar/ uma contenção/ que foge à primeira vista".

Entretanto, suas elipses compõem uma paisagem muito particular, em que o registro cotidiano é atravessado por visões, objetos simbólicos, "mônadas" que revelam o desejo de criar uma cosmologia que transborde a vivência mais intimista por meio de "simetrias de solstício", de um "céu oblíquo" e de uma "líquida luz da aurora" que se projetam sobre sua "introspecção geodésica", conforme o léxico de "Horizonte de Eventos".

No poema em prosa "Descurso", essa imagística assume um caráter onírico: "O mundo que se abre à minha frente é um campo magnético", "mistura dos reinos animal, vegetal e mineral" em que "tudo se expande como um grito" e em que "o corpo é um claustro por se romper" atraído pela luz de um "halo violeta". Ao final, a anotação "lsd, 2002" indica que o poema foi escrito sob o impacto do alucinógeno.

O próprio título do livro, que inicialmente parece uma referência a Heidegger ("evento", na obra do filósofo alemão, é aquilo que nos desperta para a compreensão do ser), na verdade é um conceito astrofísico prenhe de simbolismo: "horizonte de eventos" é o limite gravitacional de um buraco negro, a partir do qual tudo (até mesmo a luz) converge num caminho sem volta.

Essa ambiguidade mostra como cada palavra adquire um sentido novo ao longo do livro, conforme se vê na série de poemas intitulados "Um Anuário de Desvelos", que se intercalam aos outros e correspondem a diferentes anos da experiência literária de Cohn. "Desvelo", aqui, significa tanto "cuidado", "zelo", quanto "revelação", "descoberta" (outra referência a Heidegger e ao conceito de verdade do grego "alétheia" como "desvelamento"). E é justamente a partir dessa hesitação semântica entre o cultivo introspectivo da memória e as iluminações propiciadas pela leitura de escritores visionários (Breton, Artaud, Michael McClure) que Sergio Cohn cria a sua própria mitologia.

Avaliação:

Horizonte de Eventos
Autor:
Sergio Cohn
Editora: Azougue Editorial
Quanto: R$ 18 (72 págs.)

 

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