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19/05/2003 - 05h28

Londres mais parece uma paródia da arte moderna

GERALD THOMAS
especial para a Folha de S.Paulo

Quatro décadas depois do evento Monty Python, Londres está fazendo jus aos heróis da comédia que debochavam de Sartre, Genet e dos filósofos gregos, colocando todos juntos num jogo de futebol ou competindo por uma caixa de fósforos.

Essa cidade, que nunca foi um paraíso das artes plásticas, está tentando roubar o público consumidor das "fine arts" da Europa continental. Como? Construindo na prática tudo aquilo que pregou na teoria através dos anos. Cínicos como só eles conseguem ser, os ingleses tentam ganhar a batalha no campo das galerias. Entre mortos e feridos, contabilizam-se alguns existencialistas e semiólogos franceses. Soa estranho?

O exemplo mais nítido e escrachado é a galeria de Charles Saatchi, inaugurada há pouco. Basta dizer que ela fica localizada num prédio (o GLC) que, para quem conhece a Londres antiga, já em si traduz a total decadência do sistema perfeccionista britânico. Explico: o Greater London Council era o braço administrativo da Prefeitura de Londres, localizado em frente ao Big Ben, e é hoje um verdadeiro circo, onde se encontra de tudo: um aquário com golfinhos, um fast food chinês, lojas de algodão doce, um hotel Marriott e aquela roda-gigante do milênio.

Não é à toa que o curador é um publicitário. Saatchi escolheu aquela locação para sua galeria a dedo. Nas estátuas de ferro derretido de Salvador Dali que povoam o calçadão em frente ao prédio por onde o povo anda, podem-se ver as latas de cerveja deixadas pelos bêbados que por lá pernoitam. Saatchi até gosta dessa sujeira. Aliás, acho que esse é o propósito do humor montypythiano.

O Southbank, onde a galeria fica localizada, é tradicionalmente cheio de monumentos artísticos: o National Theater, o Royal Festival Hall, o Globe Theater e a Tate Modern.

Vale dizer que a Saatchi não existiria (assim como sua estrela suprema, Damien Hirst, talvez não existisse) se não fosse a segunda versão da "Sensation" --a de Nova York-- ter causado tanta polêmica por ter sido quase fechada pelo ex-prefeito Giuliani.

Cá entre nós --que ninguém nos ouça--, a Inglaterra nunca foi grande coisa em termos de artes plásticas. Fora o genial Francis Bacon e os menos geniais David Hockney e Lucien Freud (e num passado remoto Henery Moore e Barbara Hepworth e vamos esquecer logo Turner e Dadd e Blake, pelo amor de Deus!), a vanguarda mesmo não teve nada de grave aqui. Uma exceção foi Guy Bret, único responsável pela ida de Hélio Oiticica a Londres nos anos 60, à Whitechappel Gallery.

Ou seja, a antiga e modesta Tate Gallery sempre deu conta do recado. Nunca tivemos aqui um museu de arte moderna. A National Gallery, ali em Trafalgar Square, é medonha de acadêmica.

Eis que de repente surge uma Tate Modern que, além de pertencer ao grupo Tate & Lyle, ainda pega uma subvenção do Instituto Goethe e monta uma péssima retrospectiva de um fracote Max Beckman (não mais do que um cartunista, longe de ser um Otto Dix), cobra oito libras pelo ingresso e lota de turistas alemães.

A reforma do British Museum não passa de uma imitação do Musée d'Orsay, de Paris. É de chorar. É assim: Londres está levando a sério aquele livro do John Berger que zombava do desconstrutivismo (e tudo que vinha da França) e que tinha na capa uma reprodução do quadro de Magritte "isso não é um cachimbo".

Saatchi e os outros "entrepeneurs" por trás dos "jogos" que estão trazendo a arte para Londres parecem querer passar a mensagem de que, a la Magritte, a nova arte inglesa "não é arte".

A propósito, no filme "Frenesi" (72), de Hitchcock, numa das cenas iniciais, um corpo nu de uma mulher aparece boiando no Tâmisa bem em frente ao prédio do GLC, onde hoje fica a Saatchi.

Lá dentro é mais ou menos a mesma coisa, cheio de corpos nus, só que sem a genialidade e originalidade do velho cineasta. Que pena. O corpo nu de Hitchcock nos trazia calafrios. Os corpos nus da Saatchi são como os algodões doces vendidos ao lado das estátuas derretidas e encervejadas de Dali.

Gerald Thomas é dramaturgo
 

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