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31/05/2003 - 02h53

Prefácios de Henry James são reunidos em antologia

ARTHUR NESTROVSKI
articulista da Folha

Em 1909, acabou a edição iniciada dois anos antes de obras seletas de Henry James (1843-1916), revistas e prefaciadas pelo autor. A "New York Edition" viria a se tornar a mais célebre de todas as edições de James, em que pesem as mudanças radicais no texto, comparado aos das anteriores, ou até por isso mesmo. Os prefácios escritos por ele formam, em si, uma coleção extraordinária de comentários à arte do romance, de interesse central para todo leitor da literatura moderna, em língua inglesa ou qualquer outra.

De um total de 18, Marcelo Pen traduziu oito prefácios, sete deles inéditos até hoje em português. Só por isso, o crítico da Folha já mereceria aplausos: será sempre impossível traduzir tudo o que há de relevante em outras literaturas, fazer boas escolhas é crucial e poucos autores são mais crucialmente relevantes para os destinos da ficção no século 20 do que James, até hoje pouco lido entre nós. Mas seu esforço vai muito além.

Originalmente escrito como dissertação de mestrado (orientada por Iumna Maria Simon na USP), o livro inclui fartas notas e um monumental prefácio aos prefácios, quase 100 páginas de comentários detalhados, que vão da filologia à interpretação literária e constituem, desde já, um dos trabalhos mais importantes já publicados sobre o autor em nosso país. Minucioso, paciente, labiríntico, esse prefácio assume aos poucos natureza análoga aos prefácios de James, que podem ser lidos como obras literárias de interesse próprio, com força inventiva comparável aos objetos de sua atenção.

As vertiginosas dobras do autor sobre si mesmo adquirem ali um caráter de literatura no segundo grau, na "aventura reversa" de ler seus próprios livros. Ele agora narra a "estória das próprias estórias" de modo a pôr em xeque a representação de tudo: da realidade, dos livros, de si. E, se os prefácios são "estórias do desenvolvimento da nossa imaginação", isso ganha triplo relevo quando se pensa em James como expressão máxima do "gênio da consciência" (no entender de Harold Bloom), criador de "situações narrativas" onde a fisionomia "problemática", até mesmo "inconfessável" do próprio fabulista vem à tona (como diz Roberto Schwarz).

O quiproquó só aumenta quando entra em cena mais esse personagem, um tradutor e crítico de nome inverossímil, "Marcelo Pen", que só escapa da ironia jamesiana na vida real, não na do livro, onde assume o papel de narrador. Como escreve James, num dos prefácios, as relações "não param em lugar nenhum". Elas tragam também o crítico do crítico --leitor do leitor do leitor de si mesmo. E agora, leitor, tragam você.

As conclusões que Pen vai tirar disso tudo são surpreendentes e importantes. Até chegar lá, o percurso inclui uma apresentação esclarecedora de alguns dos principais estudiosos dos prefácios de James. É a história das estórias das estórias, abordando obras de Percy Lubbock (1921), Richard Blackmur (1934) e Wayne C. Booth (1968), e tocando ainda em intérpretes mais recentes, como Camille Paglia e Eve Kosofsky Sedgwick, para ficar só nessas duas.

Cada um saberá reclamar de quem deveria estar na roda e não entrou. O debate (20 anos atrás) entre Wolfgang Iser e J. Hillis Miller em torno à noção de "figura", não seria relevante? E o capítulo sobre "What Maisie Knew" no livro posterior de Hillis Miller ("Versions of Pygmalion", 1990), com referências ao prefácio e uma espetacular nota sobre o uso de "Oh" em Henry James? Etc. etc. A bibliografia sobre James é gigantesca. Reclamar de Marcelo Pen por não ter incluído um ou outro autor seria descabido, dada a pertinência de quem ele escolheu comentar. Sua postura, se se pode reduzir um leitor tão delicado a uma fórmula curta, é a do leitor liberal, que a priori não privilegia teoria alguma acima das outras.

E a tradução? Admirável na escolha do tom e no controle do ritmo --duas exigências para um tradutor de Henry James--, aqui e ali deixa escapar pequenas coisas, que saltam aos olhos justamente por serem exceção. Transformar uma regência passiva, como "'Roderick Hudson' was begun in Florence...", por exemplo, na frase direta "Iniciei 'Roderick Hudson' em Florença..." pode incomodar aos ouvidos mais sensíveis. Mas ouvidos com esse grau de sensibilidade serão também os que terão maior interesse em entender as mudanças.

"É a arte que cria a vida, cria interesse, cria importância", escreveu famosamente o autor do nosso autor. Tanto maior a ironia quando a vida que essa arte cria, como no caso dos prefácios, é a do próprio James. Deve-se a Marcelo Pen a revelação da estória "oculta" na escrita desses textos, que fazem da crítica uma forma de autobiografia. E tanto maior a pungência desse segredo quando se pensa, com ele, na literatura de James como uma estupenda ruína, incapaz afinal de se apropriar da realidade --exceto, quem sabe, ao fazer desse fracasso seu último e mais profundo tema. O que faz dos prefácios bem mais do que textos acessórios aos romances e contos: pelo contrário, os "fracassados" contos e romances vêm se completar na crítica, que o autor escreve ele mesmo, dando mais uma volta no parafuso.

Mais uma volta, não a última. Se a Arte do Romance serve à Arte da Crítica, essa, de sua parte, prepara o advento da Arte da Tradução, que devolve os textos ao enigma. Os prefácios não só ficam entre as maiores obras de Henry James, mas entre as maiores que já foram escritas sobre a arte da ficção. E é à sombra desse exemplo, no inusitado espaço entre ficção, tradução e crítica, que o crítico agora vem firmar seu próprio nome, corajosa e amorosamente sobreposto ao do autor.

Avaliação:

Henry James - A Arte do Romance
Organização e tradução: Marcelo Pen
Editora: Globo
Quanto: R$ 39 (320 págs.)
 

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