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19/06/2003 - 02h38

Ailton Graça, o Majestade de "Carandiru", revive Otelo no teatro

VALMIR SANTOS
da Folha de S.Paulo

Criado na periferia sul de São Paulo, o ator Ailton Graça, 37, já foi camelô, fiscal de lotação ou empurrou carrinho em feiras de rua do Jardim Miriam. "Mas nunca tirei o pezinho do teatro", diz o também mestre-sala de escolas de samba como Gaviões da Fiel (por seis anos) e X-9 (dois).

Desde 2001, quando reatou profissionalmente com os palcos em "Babilônia", do grupo Folias d'Arte, após cerca de oito anos de oficinas esporádicas, Graça acredita desfrutar das maturidades pessoal e profissional que o levaram a interpretar o traficante Majestade em "Carandiru", de Hector Babenco, e defender seu primeiro personagem shakespeariano, o emblemático Otelo, o mouro negro que ascende da condição de povo para ser um estrategista militar do governo de Veneza.

Graça é o protagonista de "Otelo", a nova montagem do mesmo Folias d'Arte, grupo paulistano formado há oito anos e caracterizado por um teatro político. Daí que a encenação do diretor Marco Antonio Rodrigues pretende ir muito além do recorte instantâneo da suposta traição amorosa que detona a tragédia escrita pelo poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616).

O governo de Veneza vira as costas para Otelo depois de elogiá-lo na resistência à invasão turca na Ilha de Chipre, território-chave para a expansão comercial do império veneziano à época (a peça se passa em meados do século 16, transição do feudalismo para a Idade Moderna, o mercantilismo, como lembra Rodrigues).

O general cai na armadilha de Iago (Fernando Brêtas), seu alferes ressentido por não ter conquistado a posição de tenente, e estrangula a amada Desdêmona (Renata Zhaneta) induzido ao ciúme pelo poder das palavras e pelo álibi forjado de um lenço. Por fim, Otelo crava em si a espada que não deixará dúvidas sobre os deslimites da traição ideológica, amorosa e que tais.

Graça identifica alguns pontos cruciais na curva de ascensão e queda do personagem que sempre o fascinou. Otelo resiste a enxergar as suas origens numa sociedade burguesa, na qual é estrangeiro. "Quando narra sua história no senado de Veneza, ele se reconhece melhor do que aqueles que o ouvem", diz o ator.

O fracasso do homem que foi considerado o "deus da guerra" pode estar também no próprio conflito que o alçou à glória militar. Graça ressalta que, quando Otelo enfrenta os turcos em Chipre, é uma tempestade que afunda a esquadra inimiga, facilitando seu serviço. "A guerra dele, de fato, será outra, quando nota que ruiu a estrutura política que o acolheu, quando crê cegamente e depara com a falsa aparência familiar do casamento que julgava sagrado", afirma Graça.

A atualidade da peça de Shakespeare se dá ainda pela perspectiva da discriminação racial. Os mouros são povos que habitavam a Mauritânia (África). Como um deles, Otelo naturalmente é negro. O papel, no entanto, já foi interpretado por atores brancos que se maquiavam (Paulo Autran, Juca de Oliveira, Orson Welles e Laurence Olivier, entre outros).

Há exceções de intérpretes negros, como na montagem nacional protagonizada por Norton Nascimento em 1999, dirigida por Janssen Hugo Lage, e no filme norte-americano estrelado por Laurence Fishburne em 1995, por Oliver Parker.

Segundo Ailton Graça, a questão racial não configura exatamente uma causa em "Otelo", já que o general se ocupa de outros enfrentamentos. Mas reconhece a luta do guerreiro. "Ele construiu sua vida com suor, sangue e lágrimas. Eu o vejo como um cara que foi escravo, que sofreu torturas e perseguições antes de ser um general respeitado. Depois que foi saudado como herói por Veneza, ele ambicionou o símbolo maior daquele império, a filha de um nobre senador, Desdêmona, e também queria criar um Estado novo em Chipre", afirma o ator.

Mal comemorou a conquista do seu Majestade em "Carandiru", disputado com cerca de 2.700 candidatos (foram 16 testes só para chegar ao elenco de apoio escolhido por Babenco), ele obteve outra vitória: o papel de protagonista de "Deus contra Todos", novo filme de Roberto Moreira: o matador de aluguel Valdomiro. O personagem, originalmente branco, teve parte de sua história adaptada assim que o diretor conheceu Graça.

"Curiosamente, o Roberto pedia para eu ler "Otelo", porque o personagem que ele tinha na cabeça era uma espécie de Iago, um sujeito que destrói a família de um amigo e fica com as mulheres da casa, a mãe, a filha", diz o ator.

Apesar da visibilidade, o ator segue encarando o palco como a fábrica de ilusões que o levou, também, a trabalhar com Antunes Filho em "Xica da Silva" (1988). "Teatro é um trampo como outro qualquer. Somos operários."


OTELO
De: William Shakespeare
Tradução: Maria Silvia Betti
Dramaturgista: Reinaldo Maia
Com: grupo Folias d'Arte (Bruno Perillo, Carlos Francisco, Flávio Tolezani e outros)
Onde: Galpão do Folias (r. Ana Cintra, 213, Santa Cecília, tel. 0/xx/11/3361-2223)
Quando: estréia amanhã, para convidados, e sábado para o público; de qui. a sex., às 20h30; sáb., às 21h; dom., às 19h
Quanto: R$ 20. Até 26/10.
 

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