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04/08/2003 - 11h48

Artigo: Cuidado com os pacifistas

NELSON ASCHER
da Folha de S.Paulo

A atriz francesa Marie Trintignant, em estado comatoso havia quase uma semana, morreu ou, segundo o eufemismo a que recorreu o "Libération" em sua manchete, "apagou-se" na última sexta-feira. Filha do grande ator Jean-Louis Trintignant e de uma celebridade local, a cineasta Nadine Trintignant, Marie, que tinha 41 anos, quatro filhos e um currículo de quase 60 filmes, estava em Vilna, capital da Lituânia, filmando a vida de sua compatriota, a escritora Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954).

É seu namorado, o roqueiro Bertrand Cantat, de 39 anos, band leader e letrista do grupo Noir Desir (Negro Desejo), que está sendo acusado de tê-la agredido numa briga durante o fim de semana anterior. Mas não foram apenas os envolvidos, ou seja, a dinastia artística Trintignant de um lado e um cantor famoso metido a poeta do outro, que transformaram esse "fait divers" no "talk of the town" parisiense. A história, muito mais rica, evoca, só que de forma substancialmente melhorada, aqueles dramas intragáveis de Woody Allen, como "Interiores", nos quais não há silêncio que não seja profundo e em que cada personagem é sensível, artista ou faz análise.

Na França e, em menor medida, no resto da Europa continental, atrizes e cineastas, roqueiros e letristas não são meros "entertainers". Wolfgang Amadeus Mozart não come mais com a criadagem na cozinha do castelo dos Esterházy. Eles são, hoje em dia, a nata da intelectualidade, um grupo cuja importância para o destino da humanidade o exime de humilhações como a de ter de vender seu peixe ao público. O Estado, por meio de incentivos ou de subvenções, desempenha esse papel e, confiscando o dinheiro dos ricos inúteis -garis, motoristas de táxi, médicos, garçons, lojistas etc.-, assegura aos pobres criativos um lugar ao sol, de preferência em Cannes.

Dessa maneira, a ralé, que, de tão alienada, segue preferindo o rock anglo-americano ou as produções hollywoodianas, mesmo que não se interesse por essa cultura superior, sustenta-a com seu trabalho (que, aliás, não é muito). Quanto aos refinados produtores, dispensados de prestar atenção aos gostos ou exigências de uma audiência obrigada de antemão a pagar-lhes, eles se dedicam, com a máxima liberdade, à criação, algo que geralmente consiste em agradar a seus mecenas estatais e em bajular quem esteja alguns degraus acima na hierarquia de sua guilda.

As ironias desse caso são muitas. Se não envolvesse a morte de uma jovem mulher que dispunha de talento suficiente para, num outro ambiente cultural, triunfar por seus próprios meios, quem sabe protagonizando filmes de sucesso (sim, refiro-me ao sucesso comercial), seria tentador apresentá-lo sob a forma de sátira de ou paródia. Por exemplo, ambas as Trintignant, mãe e filha, eram feministas militantes. Uma recente série de TV, dirigida por uma e estrelada pela outra, narra a trajetória, entre os anos 30 e 70, de Vitória, médica e mãe solteira que, depois de engajar-se na Resistência francesa, adere ao feminismo. O nome da produção (que, estranhamente, ecoa os títulos do marquês de Sade) é "Vitória ou a Dor das Mulheres" (2000). Mais um exemplo: tanto a atriz como o roqueiro, pacifistas que eram (como o resto dos bem-pesantes europeus), participaram das manifestações contra a libertação anglo-americana do Iraque e a deposição de seu ditador genocida.

De Bertrand Cantat, o acusado, pode-se mesmo dizer que é violentamente pacifista. Não há nenhum paradoxo aqui. Quem assassinou, no ano passado, o político holandês Pim Fortuyn, homossexual assumido e conservador, mas falsamente acusado de direitista por achar que a imigração muçulmana representava um perigo para o liberalismo do país, foi um pacifista que defendia causas ecológicas e os direitos dos animais.

Por seu turno, as passeatas em prol da paz, como as voltadas contra a globalização, frequentemente degeneram em quebra-quebra ou até em punhaladas. Um dos animadores de tais tendências, José Bové, considera-se acima da lei, e, o que é pior, as autoridades concordam com isso. Como, apesar de ter cruzado a linha que separa a militância legítima da violência criminosa, não ficará encarcerado nem uma fração do tempo a que seria condenado um vândalo menos apadrinhado, tão logo seja posto em liberdade, ele tentará de novo cassar fisicamente a seus concidadãos o direito de comerem o que e onde quiserem.

A banda chamada pateticamente de Noir Desir (um nome que já era "ringard", ultrapassado, antes mesmo de Baudelaire publicar, em 1857, "As Flores do Mal") é um conjunto francês de rock (ou de rock francês), definição que, para bom entendedor, basta. Os ritmos que combinam com o monossilabismo do inglês resistem às línguas latinas e, como a França não foi presenteada com um Vinicius de Moraes ou com os tropicalistas, gente capaz de equacionar elegantemente o impasse em questão, seu rock procura suprir o que lhe falta na essência com a verborragia politizada.

As canções de seu vocalista, que (oh, surpresa!) diz admirar Arthur Rimbaud (embora este tenha abandonado a literatura com metade da idade do roqueiro), constituem, com seus ataques ao capitalismo, à mercantilização e ao lucro, pregando que "outro mundo é possível", uma espécie de hinário da nova religião "altermundialista". Não é à toa, portanto, que Cantat se identifica com Attac, um grupo semi-oficial que pretende sobretaxar todas as transações financeiras do planeta, provavelmente para subsidiar bandas que ninguém quer ouvir e filmes que ninguém quer ver.
 

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