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22/08/2003 - 12h25

Artigo: Flash Gordon não deixou Salamanca às escuras

CARLOS HEITOR CONY

Acredito que todo mundo, principalmente os habitantes de Nova York, pensou na possibilidade de mais um atentado terrorista, tipo World Trade Center, quando a cidade sofreu o apagão da semana passada. Foi assunto compulsório e, até certo ponto, divertido na mídia internacional e deve ter provocado algumas reflexões, desde a paranóia dos grandes centros urbanos, potencialmente vítimas de sabotagem, até as consequências demográficas de tamanha escuridão, que, a exemplo de um outro blecaute na mesma cidade, provocou número recorde de nascimento de bebês, nove meses após.

Sinceramente, meu primeiro pensamento foi outro, talvez pela condenável mania de ter, desde criança, uma paranóia generalizada sobre a precariedade da civilização humana, nela incluindo os valores tecnológicos que temos à disposição e que, de um momento para outro, podem nos faltar. Desde a energia elétrica até a água em nossas torneiras.

A hipótese de um apagão universal é antiga. Minha mãe contava que o fim do mundo seria antecedido por três dias de trevas, nos quais nenhuma luz poderia ser acesa, nem mesmo a das velas, a não ser as bentas. Daí que já providenciei um bom estoque de velas que trago sempre que posso e mesmo quando não posso dos santuários que visito.

E sempre, também, senti uma mistura de horror e admiração quando lembro os versos de uma peça que nunca li ("A Ceia dos Cardeais") que era citada em tempos antigos, em que alguém imprecava contra não sei o que e pedia que tudo faltasse ou desabasse, menos o sol nas alturas, "para não deixar Salamanca às escuras".

Entre Salamanca e Nova York, deve haver diferenças, que terminam diante da possibilidade de uma tragédia, como a de o Sol rolar das alturas e deixar as duas cidades às escuras. Não tenho notícia de nenhum apagão em Salamanca, que, diferentemente de Nova York, tem suas maravilhas independentes da eletricidade, guardando algumas jóias medievais e do Renascimento espanhol. Não depende muito do metrô, dos sinais e anúncios luminosos, dos elevadores e das torradeiras elétricas.

Contudo a reflexão mais séria nada tinha a ver com Salamanca e Nova York, com nenhuma cidade de nossa geografia terrestre, mas com um planeta inteiro, inventado pelo gênio de Alex Raymond, o criador de Flash Gordon -certamente a história em quadrinhos mais famosa. Após ter salvo a Terra do choque com um meteoro, o herói tornou-se figurinha fácil no planeta Mongo, onde os homens e as mulheres tinham asas nas costas, como as dos anjos, embora nem sempre fossem angelicais.

Em Mongo, tudo era movido pelas poderosas fontes de energia que mantinham o planeta vagando no céu, um planeta que não era redondo como o nosso, em feitio de globo, mas como um imenso disco que boiava no espaço, sustentado por imensos feixes de luz. Havia palácios, castelos, rodovias e aerovias, jardins verdadeiramente suspensos não de uma Babilônia ultrapassada, mas de uma cidade que ainda deveria existir no futuro.

Flash Gordon e sua noiva, Dale Arden, cujas coxas só seriam superadas pelas de Cid Charisse nos musicais da Metro dos anos 50, tantas fizeram que acabaram como habitantes honorários de Mongo. E, numa das histórias que mais me impressionaram, ele salvou a fantástica cidade espacial da destruição. Bandidos, que os há não apenas na Linha Amarela mas em toda a parte, tramaram contra o imperador de Mongo e sabotaram as usinas que geravam a energia que sustentava o planeta no espaço. E tudo começou a desmoronar, palácios e castelos, vias e aerovias. Com a gradativa diminuição das colunas de luz, tudo se quebrava num terremoto absurdo, pois lá não havia terra que justificasse um moto da terra, não havia um chão físico como o nosso, tudo era produzido pela força de fantásticas usinas movidas por átomos até hoje inexistentes. ( Diga-se de passagem que muitas das bolações de Alex Raymond, tal como as de Júlio Verne, mais tarde se tornariam possíveis e banais).

Assim de momento, não lembro como Flash Gordon conseguiu evitar a catástrofe. No fundo, suas aventuras tinham a mesma estrutura das de todos os heróis da ficção, do Hércules mitológico ao nosso Renato Aragão de hoje. Francamente, sua façanha nunca me interessou, mas guardei para sempre aquele planeta se desmanchando no espaço, por falta de energia elétrica ou nuclear -não importa. Entre Salamanca, Mongo e Nova York, tudo dá na mesma. Um fusível queimado no lugar adequado, por ação criminosa, fadiga de material, erro humano ou sobrecarga nas linhas de transmissão, pode gerar apagões iguais ou piores. E todos ficarmos realmente às escuras.

Até que venha o apagão definitivo que nos espera, aquele que minha mãe temia e me ensinou a temer, os três dias de trevas que anunciarão o fim de tudo e de todos, vivos e mortos. E contra o qual nem mesmo Flash Gordon e Dale Arden, com suas esplêndidas coxas, poderão nos salvar.
 

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