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27/09/2003 - 04h53

Cartas de Alceu Amoroso Lima resgatam passado de resistência

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OSCAR PILAGALLO
especial para a Folha

"O Amoroso Lima está terminando a vida numa aurora." A frase, atribuída a um amigo de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), resume a trajetória intelectual do mais influente pensador católico do Brasil.

Deslocando-se do reacionarismo para posições progressistas, Amoroso Lima percorreu um caminho ideológico incomum, que levou o jovem conservador a se transformar no velho liberal, que, depois de 1964, ficaria conhecido como uma das pedras mais incômodas na bota dos militares.

Amoroso Lima gostou do comentário do amigo. "Bacana, não?", comentou, ao transcrevê-lo numa carta que agora vem a público com "Cartas do Pai --De Alceu Amoroso Lima para sua Filha Madre Maria Teresa".

A obra reúne parte da copiosa correspondência do escritor endereçada desde 1951 à filha, monja enclausurada no mosteiro beneditino de Santa Maria, em São Paulo. Madre Maria Teresa, 74, liberou, por enquanto, as cartas escritas entre 1958 e 1968, o período em que a "aurora" de Amoroso Lima começou a ganhar nitidez.

Cronista de jornal, inclusive da Folha, e autor de livros, Amoroso Lima sempre teve espaço para expor seu pensamento. O autor que emerge das cartas, portanto, não surpreende o leitor familiarizado com seu texto, frequentemente assinado com o pseudônimo de Tristão de Athayde.

As cartas a Tuca --apelido familiar da madre-- valem mais pelo registro intimista do homem público. Ouve-se, nas entrelinhas, o pai saudoso que quer, com a correspondência, manter o vínculo com a filha, tirada do convívio familiar aos 22 anos.

As circunstâncias em que os missivistas se encontravam --o pai girando o mundo, a filha entre quatro paredes-- fazem de "Cartas do Pai" um painel de época. A destinatária de então e o leitor de hoje vêem o mundo através das lentes do humanista que, entre outras reações, se alegra com o papado de João 23 (1958-1963) e se entristece com o assassinato de John Kennedy (1917-1963).

É o Brasil, no entanto, o foco principal de sua atenção. Sistematicamente na oposição, o escritor não perdoa nenhum dos cinco presidentes do período em que as cartas foram escritas.

O primeiro deles, Juscelino Kubitscheck (1902-1976), não seria tão popular hoje se dependesse de Amoroso Lima. Em 1960, recebeu esta avaliação: "O povo é naturalmente carnavalesco, e o JK compreendeu isso muito bem, de modo que está governando carnavalescamente, com dinheiro falso que dá impressão de verdadeiro, porque algumas obras visíveis se têm feito por aí com ele".

Quanto a Jânio Quadros (1917-1992), embora não desaprovasse sua política, Amoroso Lima foi profético em carta de março de 1961 (cinco meses antes da renúncia): "O modo exageradamente personalista como está agindo poderá levar-nos a más consequências, pela hipertrofia do poder pessoal, que sempre levou os governos à ruína".

Escritas em cima do fato, as cartas refletem a primeira reação, ainda sem a peneira da história. Natural, portanto, que algumas análises, em retrospecto, se mostrem equivocadas.

É o caso do golpe continuísta de João Goulart (1918-76)-- hipótese com que Amoroso Lima trabalhou até o último minuto antes da queda do presidente--, que, como se sabe, não se concretizou.

Ainda assim, vive-se, a partir do texto, a experiência de uma geração que presenciou o início do regime militar. As nuances do discurso radical, os interesses pessoais travestidos em arroubos patrióticos, as mesquinharias dos ricos, são aspectos que permeiam o cotidiano e que muitas vezes aparecem diluídos nos livros de história. É nessa zona cinzenta, mescla de reflexão política e crítica de costumes, que se situa essa espécie de diário.

Embora não tenha, pela própria natureza, um eixo central, o livro se concentra em 1964 e seus desdobramentos. Quando se diz que Amoroso Lima foi um crítico de primeira hora do regime militar, não se trata de força de expressão. Em carta datada do dia seguinte ao golpe, escreveu: "É apenas vitória do golpismo direitista para tranquilidade dos proprietários, latifundiários, udenistas e mulheres histéricas" (referência às "boas senhoras psicopatizadas" que haviam organizado as Marchas da Família).

O livro pára em 1968, após a edição do AI-5. Mais uma vez, Amoroso Lima reagiu de pronto: "Tenho vergonha de estar solto numa hora destas, pois são os melhores que estão presos de fato, embora todos nós estejamos presos cá fora". Foi com essa voz que os militares não puderam censurar, tal a autoridade moral de seu dono que Lima se transformou em importante peça de resistência civil à ditadura militar. "Cartas do Pai" resgata esse passado.

Oscar Pilagallo, 47, é jornalista e autor do livro "A Aventura do Dinheiro"

Avaliação:

Cartas do Pai --De Alceu Amoroso Lima para sua Filha Madre Maria Teresa
Organização: Madre Maria Teresa, Alceu Amoroso Lima Filho e Silvia Amoroso Lima Affonso Ferreira
Lançamento: Instituto Moreira Salles
Quanto: R$ 78 (676 págs.)
 

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