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06/10/2003 - 10h42

Artigo: Roubar a beleza árida do sertão seria um esforço inútil

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VICENTE AMORIM
Especial para a Folha de S.Paulo

Críticos de cinema são parte fundamental de uma cinematografia --tem responsabilidade histórica igual à dos diretores ou produtores; afinal, a opinião legada ao futuro é a deles-- e filme sem crítica não faz parte da cultura. Há que se ter noção dessa responsabilidade.

A boa crítica, inclusive, não é obrigatoriamente favorável -é aquela que provoca reflexão. Ela é, portanto, tão indispensável para o realizador quanto para quem vai escolher onde passar duas horas de sua noite. No entanto algumas críticas ao cinema que se faz hoje em dia no Brasil cheiram ou a uma vontade irresistível à alienação ou a um patrulhamento ideológico de fazer inveja aos que se manifestaram contra a tropicália e a guitarra elétrica ou contra "A Idade da Terra".

O lado alienado não se dá nem ao trabalho de analisar os filmes. Este lado nos repete a sinopse, rotula o filme como "chato" e o dispensa como quem recusa um torresmo no botequim --ou, por outra, o elogia com falsa inteligência: "interessante". O trabalho investido num filme é tão imenso que o mínimo que se espera das críticas, boas ou más, é um mínimo de esforço intelectual.

O lado patrulhado é muito mais complexo.

Deste lado, alguns críticos tomam para si a "defesa" do cinema novo, tentando contrapô-lo ao cinema de hoje e colocando-o como uma espécie de movimento organizado contra a indústria. Nada poderia ser mais equivocado. O cinema novo (e isso me foi dito por vários de seus membros com os quais trabalhei, como Leon Hirszman, Cacá Diegues e Arnaldo Carrilho) tinha, ao contrário do que colocam esses senhores, a pretensão de ser industrialmente viável --é, por exemplo, difícil assistirmos a um filme do movimento no qual não haja agradecimento aos donos do Banco Nacional.

Invenção e originalidade não eram armas contra a viabilidade econômica, mas meios para alcançá-la.

"O cinema brasileiro peca por exagerar na escalação de rostos conhecidos da televisão", li recentemente. Quando se critica o "casting" de alguns filmes feitos hoje, me vem à lembrança o elenco de "Terra em Transe": Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy, Paulo Gracindo, Danuza Leão, Telma Reston, Mário Lago... Eram todos conhecidíssimos na época --quase o supra-sumo do "star system" tupiniquim.

Seria o equivalente a se fazer hoje um longa-metragem com todo o elenco da novela das oito --e nem por isso se acusa o filme de Glauber de "pouco original". E "Terra em Transe" é só um dos exemplos.

Muitos filmes com personagens pobres são criticados por terem no seu elenco "atores bonitos". Isso é, com certeza, um misto de ignorância com pobreza --de espírito. Por que personagens pobres têm de ser, obrigatoriamente, "feios"? O que é feio? Quem é bonito? Será que Yoná Magalhães era "feia" o suficiente para fazer "Deus e o Diabo na Terra do Sol"?

Além da confusão filosófica que fazem, esses críticos demonstram um enorme desejo de se sentirem mais "bonitos" que personagens pobres --pois só assim podem pôr a funcionar toda a sua culpa, o seu recalque, o seu paternalismo e a sua piedade.

Chega-se ao extremo de tentar transformar uma imensa região do Brasil em gênero cinematográfico. Sim, porque para esses críticos o Nordeste é um gênero --como são comédia-romântica, ação ou terror. Incapazes de analisar histórias passadas nessa região por seu valor intrínseco, não conseguem ver as personagens desses filmes com suas contradições, riquezas e mazelas próprias.

Para esses críticos, personagem de filme nordestino tem de ser um estereótipo do que eles consideram o "homem nordestino" --como se isso existisse!

Há uma cobrança para que esses personagens sirvam como metáfora para todo um povo. Não há como reunir num só personagem as características de todo um povo! Os personagens dos filmes realizados nessa região do país têm de ser analisados à luz da história que cada filme está contando e não como objeto de estudo sociológico, o que reduziria cada personagem a um signo, roubando dele toda a profundidade dramática.

O Nordeste não é um gênero --é uma região do nosso país-- e, portanto, qualquer história pode se passar por lá, não apenas as que desejam alguns. O fato de o Nordeste ser a região mais pobre do nosso país também não nos obriga a fazer por lá apenas filmes "engajados". Até porque, quem fez dever de casa sabe disso, todo filme é um filme político.

Para esses críticos, filme com personagens pobres tem de ter, também, fotografia e linguagem pobres, senão é acusado de sofrer de "estética publicitária" --aberração que desqualifica imediatamente qualquer um.

Desafio qualquer pessoa, mesmo sem nenhum conhecimento técnico, a postar-se no meio do sertão com uma polaróide e fazer uma má foto. A luz, o relevo e a textura da paisagem são únicos. Por mais concentrado que seja um filme em seus personagens, ele, sendo passado no sertão, deixa ver a paisagem --roubar-lhe sua beleza árida seria um esforço tão grande quanto equivocado e inútil.

Vicente Amorim é cineasta, diretor de "O Caminho das Nuvens"
 

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