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07/10/2003 - 04h27

Estréia de Maria Rita é um presente (quase) inaceitável

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OTÁVIO DIAS
da Folha de S.Paulo

Há algo de sobrenatural no reino da MPB. Quando morreu, em 1982, Elis Regina, que tinha apenas 36 anos, mas já era a mais clássica das cantoras do país, ficou suspensa no ar. Para seus admiradores, seu desaparecimento precoce tornou-se algo sem solução. Mas os sentimentos de perplexidade e de perda foram ficando para trás e encontraram um lugar onde descansar.

De repente, começa-se a comentar que a filha de Elis havia decidido superar a própria resistência e também cantar. A princípio, não dei bola. Então, há alguns dias, ouvi seu CD de estréia. Fiquei estupefato: maravilhado e incomodado, mas, acima de tudo, muito confuso.

Poucos dias após sua morte, Elis entraria em estúdio para gravar mais um disco. Pois o CD "Maria Rita" parece muito semelhante ao disco que Elis não gravou em 1982. Não há dúvida: é um presente. Mas um presente (quase) inaceitável. Digo quase porque não consigo parar de ouvi-lo. E de mostrá-lo a várias pessoas.

Mas por que inaceitável? Provavelmente porque aqueles sentimentos que já haviam achado descanso foram catapultados e, novamente, estão soltos no ar, sem solução.

Se Maria Rita lembrasse Elis, mas seu som fosse diferente, talvez fosse uma solução. Mas a filha é igual à mãe. O repertório é igual, os arranjos são iguais, o dom de iluminar as músicas é igual, a dicção, a sustentação e as improvisações são iguais, a emoção e o humor na hora certa são iguais.

No especial exibido anteontem pela TV Globo, a movimentação, o gestual e as expressões reforçam essas impressões. Com surpreendente maturidade, Maria Rita parece iniciar sua trajetória no mesmo ponto em que a de Elis parou. É como se as duas carreiras se fundissem e se tornassem uma só.

Ou, ainda mais extraordinário, como se a mesma força artística se manifestasse duas vezes no mesmo tempo histórico. Elis morreu, mas, 21 anos depois, está "de volta" através de sua filha, só que 10 anos mais jovem. Isso tudo dá um nó na cabeça. E assusta.

Mostro o CD a uma amiga, quero dividir minha aflição. Ela me diz que o universo é como uma espiral e que há uma beleza em pensar que a mãe cantora (ou será cantora-mãe?) morreu e, anos e voltas depois, a filha estreante a reencontrou. E, com ela, todos nós. Sim, é lindo imaginar que Maria Rita pegou o bastão da mão de Elis e agora seguirá com ele.

Outra amiga --aliás, mãe da primeira, essas mães e filhas me deixam louco--, também fã incondicional de Elis, lança outra tese. Diz que Maria Rita, que tinha cinco anos quando Elis morreu, uniu-se à mãe por meio da música e que esse é um processo muito profundo que merece respeito. "Não fale mal da moça", exige. Mas como falar mal?

Abro aqui um parêntese para um breve testemunho. Conheci Elis nos seus últimos meses de vida. Lembro-me de sua reação quando, após o show "Trem Azul", Elis viu Maria Rita, um pingo de gente, com uns óculos de lentes enormes, entrar no camarim. Lágrimas brotaram de seus olhos, e ela disse algo como "meu Deus, é minha filha!".

Construo minha própria hipótese radical. Sabendo de antemão que seria cobrada, a filha, ela mesma e de caso pensado, afirma "Não sou parecida, sou igual!". E, dessa maneira, às avessas, torna irrelevantes as inevitáveis comparações.

Mas será, tudo isso, possível?
 

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