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13/10/2003 - 10h45

Artigo: Venceu a música

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JOÃO CARLOS MARTINS
Especial para a Folha de S.Paulo

Era um final de tarde do último setembro quando me dirigi à Catedral de Colônia, na Alemanha, e, sentando num banco, comecei a refletir sobre o labirinto que uma pessoa tem que atravessar para encontrar a sua verdade. Os ares de outono já começavam a bater nessa cidade que respira cultura 24 horas por dia.

Naquela manhã, fui assistir, numa sessão privada, ao documentário realizado pela cineasta alemã Irene Langemann sobre a minha vida e que foi patrocinado por algumas fundações européias. Durante nove meses, Irene entrou, eu diria, até em minha privacidade, o que chegou a causar algumas discussões entre nós. Checou arquivos de televisões européias, americanas e brasileiras, jornais com críticas e entrevistas, e, além disso, eu diria que ela realizou um check-up físico, nos hospitais pelos quais passei, e psicológico, com as pessoas que convivi.

Após ter obtido sucesso com documentários realizados sobre o Ballet Bolshoi e sobre os meninos prodígios do Conservatório de Moscou, conseguiu o financiamento na França e na Alemanha para este novo desafio e, talvez por ter nascido na Sibéria e se radicado na Alemanha, acompanhou os anos da Guerra Fria e aprendeu nestes 45 anos a penetrar na alma de seus personagens, o que a tornou uma cineasta especial.

Ao final da exibição, eu estava sem graça, com lágrimas nos olhos, não querendo olhar para os diretores das fundações que aplaudiam o filme. Surpreendentemente, quando olhei para eles, verifiquei que também tinham lágrimas. Sentado no banco da Catedral, pensei que estas não eram de tristeza, mas, sim, de esperança.

Em uma hora e 40 minutos pude ver meus dramas cirúrgicos quando criança, meus estudos iniciais, o sucesso nos anos 60, meu primeiro acidente jogando futebol, o primeiro abandono da música durante sete anos, por falta de maturidade, meu período no mercado financeiro, minha agência para promover lutas de boxe, a volta à música... o início da gravação da obra de Bach... novamente o reconhecimento público. O segundo abandono da música por sete anos, por causa do Mal de Lehr, a companhia de construção, os problemas com a justiça em virtude de duas campanhas eleitorais.

Finalmente a volta à música após uma carta de meu extraordinário pai, o final da gravação da obra completa de Bach, o sucesso nos EUA seguido de um assalto na Bulgária, que me levou durante um ano ao Jackson Memorial Hospital em Miami para a reprogramação cerebral, a luta desesperada para continuar tocando, a perda da mão direita, os concertos só com a mão esquerda e, finalmente, a última cirurgia na mão esquerda e o fim da atividade como pianista.

Começo

Seria o fim. Não, é só o começo, pois desta vez sobrou a música e, além das "master class" no exterior, Deus levou-me ao encontro com os jovens e hoje dirijo a Faculdade de Música do Centro Universitário UniFiam-Faam e lá, após encontrar uma coordenadora, um corpo discente e docente maravilhosos, perguntei a mim mesmo o que fazer com os jovens que não podem estudar música, e, com a ajuda da administração superior, conseguimos fazer um acordo com o Exército da Salvação para reintegrar jovens de liberdade assistida da Febem à sociedade.

Os primeiros encontros foram fascinantes, os professores e os jovens foram se aproximando timidamente, ganhando coragem, iniciando uma longa jornada que deverá ganhar força nacional, já que veio ao encontro dos ideais de meu amigo Cristovam Buarque, que se apaixonou pela idéia. A melhor notícia eu recebi quando um dos jovens enviou-nos uma carta dizendo que a música venceu o crime.

Por outro lado estamos resgatando a memória daqueles que não tiveram um verdadeiro reconhecimento em nosso país. É o caso de Guiomar Novaes, idolatrada nos EUA e que, apesar de algumas ações isoladas, como um livro, um documentário e as atividades em São João da Boa Vista, merece um reverenciamento muito maior pela genial pianista que foi.

Hoje iniciei estudos de regência com os maestros Abel Rocha, Walter Lourenção e Júlio Medaglia, e, apesar de meus 63 anos, estou fascinado pelo fato de continuar na música e expressar minhas idéias interpretativas dos grandes mestres.

Para aqueles que gostaram ou não gostaram da forma como eu transmiti minhas emoções eu digo: continuem sintonizados.

Por estas razões eu concluí que as lágrimas em Colônia, na Alemanha, não eram nem de tristeza nem de esperança, eram de alegria.

João Carlos Martins, 63, é pianista e diretor da Faculdade de Música do Centro Universitário UniFiam-Faam
 

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