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19/10/2003 - 05h14

Mostra exibe testamento estético de cineasta morto em fevereiro

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JOSÉ GERALDO COUTO
Colunista da Folha de S.Paulo

"Vai e Vem", finalizado pouco antes da morte do cineasta português João César Monteiro (1939-2003), pode ser visto como seu testamento estético, político e existencial, iluminando retrospectivamente uma das obras mais originais e perturbadoras do cinema moderno.

A 27ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo traz uma retrospectiva de dez longas do diretor. O espectador que ainda ignora essa obra estranha e rica não perde nada se começar a conhecê-la pelo fim, pois "Vai e Vem" sintetiza, depura e aprofunda suas principais linhas de força.

Aqui, o velho viúvo João Vuvu (Monteiro), avatar mais melancólico do João de Deus que foi seu alter ego em outros filmes, faz diariamente o mesmo percurso de ônibus por Lisboa e volta ao casarão onde mora sozinho.

A narrativa se compõe de longos planos-sequências que encerram, cada um, uma situação autônoma: João contratando uma "mulher a dias" (empregada diarista), João conversando com uma amiga, João discutindo com o filho que acaba de sair da cadeia etc. Entre um e outro desses blocos, as viagens de ônibus.

Nessa relação episódica com os outros, João expõe sua concepção libertária da vida, atacando o Estado, o mercado, a religião e defendendo zelosamente suas esquisitices sexuais, ciente de que as perversões são como que o último reduto da individualidade num mundo marcado pela massificação da experiência.

Monteiro foi talvez o último anarquista do cinema, um homem para quem a estética é também uma política, ambas fundadas no erotismo e no culto à liberdade dos sentidos.

Em "Vai e Vem", reencontramos os enquadramentos fixos e precisos, o uso parcimonioso e certeiro da música e as referências cruzadas que embaralham a todo momento a alta e a baixa cultura, o sublime e o grotesco, o pornográfico e o elegante, os versos mais elaborados e os trocadilhos mais infames. Alguns momentos são antológicos. Num café mantido por religiosos, Vuvu expõe a uma velha amiga uma versão obscena da gravidez da Virgem.

Em cena que lembra Godard, o protagonista entrevista uma candidata a "mulher a dias" e esta lhe fala de Lênin e empirocriticismo, concluindo com malícia: "Sou vermelha dos pés à cabeça". Depois, ele esfrega o chão enquanto ela se estende no divã, lânguida como a "Maya Vestida", de Goya.

Permeia todo o filme, a par da sem-cerimônia com que se fala de cus e paus, uma sensualidade esculpida sutilmente na contraluz.

Estamos na quintessência do cinema de Monteiro. A diferença, aqui, é que o diretor/ator, já muito doente, faz um réquiem para si próprio. Como diz seu personagem, ao fugir do hospital: "Prefiro agonizar ao ar livre".

Não por acaso, o único close do filme é o longo plano final, que mostra seu olho claro refletindo uma praça, as árvores, o céu azul. Artista insubmisso, da estirpe de Buñuel e Pasolini, Monteiro manteve até o fim os olhos bem abertos para a miséria da vida, mas também para o seu mistério e o seu gozo.

Avaliação:

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