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21/10/2003 - 04h32

Renato Cohen foi guardião da vanguarda

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SERGIO SALVIA COELHO
crítico da Folha

Renato Cohen, que morreu no sábado, aos 46, vítima de infarto, se foi cedo e rápido demais, talvez para mostrar que a vida é fugaz como um happening.

Conheci Renato, como muitos da minha geração, enquanto um guardião atento do teatro de vanguarda. Ele fez parte do júri de uma Jornada de Teatro Experimental do Sesc, em uma das raras vezes que me arrisquei enquanto diretor, com "Dias Felizes", de Samuel Beckett (1906-1989); estava também na banca de qualificação de meu mestrado. Em ambas as vezes, só endossou meu trabalho depois de um exame meticuloso, cobrando sempre mais precisão, mais clareza, mais embasamento.

Um "desorganizado extremamente organizado" nos termos de seu orientador e editor Jacó Guinsburg --em cuja editora Perspectiva publicou ensaios e traduções-- Renato Cohen deixou uma obra teórica que demonstra com clareza o quanto o teatro experimental, ainda visto enquanto provocação ou espontaneidade, tem sólidas bases nos vanguardistas russos, alemães, americanos, e um rígido processo de criação e registro.

Em "Performance como Linguagem", originalmente sua dissertação de mestrado, expõe os métodos ainda pouco assimilados no Brasil de Joseph Beuys, Laurie Anderson e o grupo Fluxus, entre outros. O seu doutorado rendeu "Work in Progress na Cena Contemporânea", no qual o conceito wagneriano de "Gesamtkunstwerk" --a "obra de arte total" que tanto norteou a obra de Gerald Thomas e José Celso Martinez Correa-- é analisado com profundidade.

Seu lado rigoroso, acadêmico, não tolhia, como é costume se pensar, sua paixão criativa. Junto a seu grupo Ka, Renato Cohen fez espetáculos marcantes, baseando-se em Magritte ou na poética Zaum de Vélimir Khlébnikov.

Constituiu também, junto a usuários de serviço de saúde mental, a Companhia Teatral Ueinzz, no qual o espírito criativo e a organização cênica não faziam nenhum tipo de concessão às eventuais limitações dos performers.

Foi em um espetáculo da Ueinzz que tive a única oportunidade de fazer uma crítica de seu trabalho. Em "Gotham SP", sem nenhum paternalismo nem exposição vexatória, cada um expunha sua utopia, em pequenos solos que os elevava bem além do estigma cotidiano da doença mental.

Apenas um deles me pareceu estar se expondo demais em sua fragilidade. Enfaixado como uma múmia, proferia um discurso em voz trêmula, exaltado, inseguro. Durante o espetáculo, me pareceu necessário fazer o reparo a Renato. Mas nos agradecimentos, a "múmia" revelou o rosto sorridente do próprio diretor, em sua enorme ousadia de tímido.

Sua paixão pelo teatro, que o fez abandonar uma bem-sucedida carreira de engenheiro, era total. Em nome do risco inerente ao teatro experimental, não permitia que se dispersasse em busca de patrocínio ou marketing pessoal. Talvez por isso a importância de sua obra não tenha ficado clara para o grande público, mas seu prestígio junto a grandes criadores sempre se manteve constante, habilitando-o por sua vez a influenciar toda uma geração.

Cedo demais se foi Renato Cohen. Mas os discípulos que deixou na PUC e na Unicamp, assim como todos aqueles que puderam se beneficiar de seu contato, guardaram uma marca profunda de seu rigor e de sua paixão. Muito do que se verá de desnorteante e fecundo no teatro das próximas décadas terá essa marca.
 

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