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25/10/2003 - 08h57

"4.48 Psicose" busca sanidade em meio a convulsão

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MARIO VITOR SANTOS
especial para a Folha

Os espectadores de "4.48 Psicose" encontram-se com a surpresa logo na chegada. A platéia fica num silo circular a que se chega descendo uma escada helicoidal. Enquanto o público ainda se aproxima e tenta reconhecer o local, bem iluminado, mas profundo e claustrofóbico, explode com um estrondo o ventre de um manequim feminino pendurado.

Dela nascem os dois "atores", vozes gêmeas da narrativa vertiginosa. Trata-se de um teatro feito no fundo do poço, nas entranhas. A platéia está dentro do tubo.

O texto sem personagens da dramaturga inglesa Sarah Kane (1971-99) expõe o fluxo de pensamentos de uma mulher obcecada pela idéia do suicídio. É uma espécie de réquiem para a personagem, um balanço de suas insuficiências, um exorcismo, uma invocação ao fim das falsidades que conformam o viver.

Após uma noite em que "tudo me foi revelado", a voz parece querer conjurar espetacularmente todas forças, inclusive as que atuem sobre a própria forma cênica. Ela blasfema contra Deus, lamenta por ter perdido a fé, ataca a platéia e o espetáculo que propicia. Uma série de suicídios está em jogo: além da autodestruição física da personagem, o desmonte da própria ilusão teatral parece ser significativo para que não apenas as figuras em cena, mas o teatro alcance um estatuto superior de verdade.

O texto da peça (dividido entre os atores Luciana Vendramini, Luiz Päetow e o próprio diretor, Nelson de Sá, que participa da ação) é composto de "fragmentos desorientados". A marca comum é um quase insuportável viés de magnificação: hiper-realismo do fluxo mental, ampliado pelos ecos e o sentimento labiríntico e circular do silo; hiperconsciência da personagem em estado liminar, tomada pela visão especial que se atribui às almas em estado de transmigração para outra esfera.

A protagonista sabe que vive numa metáfora, ou seja, a peça exibida aos espectadores. "A característica que define uma metáfora é que ela é real", diz. O fato de a autora ter ela própria cometido suicídio incorpora-se ao texto a posteriori conferindo-lhe um outro valor de verdade, embaralhando as noções de ficção e realidade, de autor e personagem, de vida e linguagem teatral.

Na escolha do espaço, nas elaboradas projeções de imagem e na trilha sonora, a montagem de Nelson de Sá --que é editor da Ilustrada-- amplifica ao máximo uma leitura atenta das possibilidades do texto de Kane. A encenação recusa-se a render-se a uma leitura "médica", psiquiátrica, induzida pelo título. Ao contrário, investe na luminosidade e na lucidez presentes na situação.

Infelizmente, porém, o mesmo não se pode dizer das atuações. No espetáculo da estréia o que se ofereceu aos espectadores foram representações tímidas, lamentos em forma de preces fúnebres, monocórdias. Assim, o sentido de exaltação presente no texto enfraqueceu-se numa rendição a uma atitude tradicional, codificada, de uma idéia simplista, realista e convencional do suicídio como fatalidade e como desgraça.

Isso se explicitou na expressão etérea de Vendramini e na timidez com que o próprio diretor-ator emite suas linhas, em geral justamente aquelas que evidenciam no texto uma racionalidade superior, a síntese que a iminência do suicídio parece propiciar.

Para que as potencialidades de "Psicose 4.48" aflorem plenamente, os atores precisam liberar-se de qualquer peso, atuar, encarnar não só o lamento, mas também o esfuziante e libertador desespero da morte como recurso para instaurar a verdade. Trata-se de eliminar o teatro na vida como forma de acabar com a ilusão no teatro, inoculando-o de novo vigor, pressagiado no explosivo parto inicial.

Mario Vitor Santos é jornalista

Avaliação:

4.48 Psicose
De:
Sarah Kane
Direção: Nelson de Sá
Com: Luciana Vendramini e Luiz Päetow
Onde: Sesc Belenzinho - subsolo (av. Álvaro Ramos, 915, Quarta Parada, região leste, tel. 6602-3700)
Quando: sáb. e dom., às 19h30; até 7/12
Quanto: de R$ 7,50 a R$ 15
 

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