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01/11/2003 - 05h00

Dalton Trevisan flagra instinto provinciano em "Capitu Sou Eu"

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MARCELO PEN
Crítico da Folha de S.Paulo

Dalton Trevisan une, no título de seu último livro de contos, duas heroínas da tradição oitocentista: a machadiana Capitu e Emma Bovary, sobre quem Flaubert um dia disse: "Madame Bovary, c'est moi!" ("Madame Bovary sou eu!"). A referência direta remete a um caso de infidelidade nunca provado, enquanto a citação subentendida aponta uma adúltera notória.

No conto epônimo do escritor curitibano, temos uma professora apaixonada por um aluno. No início, ela irrita-se pelo fato de o rapaz advogar a traição de Capitu. Segundo ele, não se trata de "debate literário", mas de "questão pessoal": Capitu é uma "simples mulherinha à-toa".

Para os personagens de Trevisan, 78, não há sutileza nem meio-tom. Pessoas traem. Escravas de emoções abissais e dos instintos mais incontroláveis, também copulam o tempo todo. Das crianças aos velhos, do malandro ao delegado. No intervalo, desconfiam, enganam, ameaçam e matam.

Já se falou do caráter minimalista da prosa do autor ou, como o crítico Alfredo Bosi definiu, de "sua voluntária pobreza de meios". Esse atributo está representado na frugalidade do estilo, no tamanho reduzido dos contos, mas também na repetição das situações, dos caracteres e das condições espaço-temporais.

Os personagens surgem enredados numa Curitiba semiprovinciana, cujo processo de modernização nunca se completa. Se há um travesti que clama não viver "sem pó e a pedra" e a presença de uma solitária câmera de segurança, muito mais fortes são as menções ao licorzinho de uva, à antiga marchinha de Carnaval, à pracinha, ao trenzinho que não pára de apitar. É interessante o uso expressivo do diminutivo diante da sordidez e do apelo sexual dos contos. Se, por um lado, sugere um estádio de inocência incompatível com a exibição de taras e obsessões, por outro, parece interromper a meio caminho o processo de dissolução em que se encontram os personagens.

Dessa forma, aprisionadas numa condição moral entre a inocência e a depravação, essas criaturas espelham a "cidade social" estacionária no curso da modernização. Ao ouvir que "Curitiba já não é a mesma", um personagem reflete que o inverno anda "cada ano mais gélido".

O frio dos descampados rurais entra, assim, sorrateiro (como um "terrorista") no espaço urbano de Curitiba, lembrando que, embora a cidade tenha se desenvolvido, as forças da natureza, sejam elas atmosféricas ou ligadas a pulsões instintivas, podem atacar qualquer um, a qualquer momento.

Capitu, irremediavelmente ligada à adúltera Bovary, não tem direito à defesa no universo de Trevisan. Sentenciada de antemão pelo provincianismo arcaico que perdura nas estruturas semimodernas de uma sociedade pós-agrária, está aqui destinada não só à traição, mas às agruras de uma existência tacanha, sem remissão nem degredo.

Ao contrário da heroína de Machado, "enjeitada na Suíça", a professora resigna-se com o "calvário" de humilhações a que se submete em nome do amado: "Condenada a vigiá-lo, a guardá-lo, a sempre esperá-lo". Sua Suíça é aqui. Curitiba, Brasil.

Avaliação:

Capitu Sou Eu
Autor: Dalton Trevisan
Editora: Record
Quanto: R$ 19 (114 págs.)
 

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