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05/12/2003
-
08h54
INÁCIO ARAUJO
crítico da Folha
O ponto forte de "Coisas Belas e Sujas" é sua idéia central, a de que a imigração ilegal tem a função, antes de mais nada, de criar um ambiente de pessoas temerosas, dispostas a tudo para não ser apanhadas pelas autoridades de imigração.
Graças a essas pessoas, uma série de atividades ilegais podem ser acobertadas, de tal modo que os verdadeiros criminosos fazem o papel bonito, ou quase isso.
Os ilegais, no caso, são o médico nigeriano Okwe e a jovem turca Senay. O refugiado Okwe ganha a vida como chofer de táxi e porteiro de hotel. Nas horas que descansa, o faz no quarto de Senay --faxineira no hotel.
Estamos no início, e também na melhor parte do filme, em que Stephen Frears dedica-se a mostrar um determinado meio londrino. Estamos no direito de esperar por um novo "Minha Adorável Lavanderia", por exemplo.
Por que as coisas desandam a horas tantas? Pode ser pela intriga rocambolesca, na qual o gerente do hotel usa os quartos para retirar rins de imigrantes ilegais em troca de passaportes falsos. Pode ser porque Senay passa a ser perseguida pela imigração e, como decorrência, vitimada por chantagistas, que a forçam a praticar atos degradantes em troca de seu silêncio. Pode ser ainda porque Okwe é uma alma boa, impecável, boa demais para este mundo.
Se todos esses aspectos tendem a introduzir um transbordamento romanesco certamente excessivo, o problema central do filme --que engendra os demais-- é de outra ordem. Observamos o filme: as agruras dos imigrantes, dificuldades, humilhações etc. Mas de onde fala Stephen Frears? O que nos permitiria acreditar que essa é a verdade? Que os imigrantes ilegais são seres angelicais como os descritos? Que os imigrantes legais tendem à canalhice?
Nada, exceto a crença de Frears de que as coisas se passam assim. Aceitemos essa crença. Mas vamos convir que, num mundo tomado por imagens, e quase sempre falsas, a crença não basta para que acreditemos no que vemos.
A verdade da imagem é, hoje, cada vez mais rara. Produzi-la não é idêntico a imitar algo que parece verdadeiro. Para ficar com um exemplo recente, em "A Inglesa e o Duque", Eric Rohmer chegou a resultados notáveis na representação da época da Revolução Francesa ao reconstituí-la através de quadros. Pode parecer estranho a quem não viu, mas, passados alguns minutos de estranhamento, o espectador já não consegue conceber outra Paris revolucionária que não aquela, e a desprezar as reconstituições que imitam Paris no fim do século 18.
Com a dramaturgia algo semelhante acontece. À força de faltar essa verdade que não vem da imitação, mas da produção de realidade, "Coisas Belas e Sujas", a cada rolo que passa, parece mais um melodrama barato, indigno de Frears, ou de seu passado. Essa é a penosa impressão que fica.
Avaliação:
Coisas Belas e Sujas
Produção: Inglaterra/Somália, 2002
Direção: Stephen Frears
Com: Chiwetel Ejiofor, Audrey Tautou
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco
"Coisas Belas e Sujas" é indigno do passado do diretor
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crítico da Folha
O ponto forte de "Coisas Belas e Sujas" é sua idéia central, a de que a imigração ilegal tem a função, antes de mais nada, de criar um ambiente de pessoas temerosas, dispostas a tudo para não ser apanhadas pelas autoridades de imigração.
Graças a essas pessoas, uma série de atividades ilegais podem ser acobertadas, de tal modo que os verdadeiros criminosos fazem o papel bonito, ou quase isso.
Os ilegais, no caso, são o médico nigeriano Okwe e a jovem turca Senay. O refugiado Okwe ganha a vida como chofer de táxi e porteiro de hotel. Nas horas que descansa, o faz no quarto de Senay --faxineira no hotel.
Estamos no início, e também na melhor parte do filme, em que Stephen Frears dedica-se a mostrar um determinado meio londrino. Estamos no direito de esperar por um novo "Minha Adorável Lavanderia", por exemplo.
Por que as coisas desandam a horas tantas? Pode ser pela intriga rocambolesca, na qual o gerente do hotel usa os quartos para retirar rins de imigrantes ilegais em troca de passaportes falsos. Pode ser porque Senay passa a ser perseguida pela imigração e, como decorrência, vitimada por chantagistas, que a forçam a praticar atos degradantes em troca de seu silêncio. Pode ser ainda porque Okwe é uma alma boa, impecável, boa demais para este mundo.
Se todos esses aspectos tendem a introduzir um transbordamento romanesco certamente excessivo, o problema central do filme --que engendra os demais-- é de outra ordem. Observamos o filme: as agruras dos imigrantes, dificuldades, humilhações etc. Mas de onde fala Stephen Frears? O que nos permitiria acreditar que essa é a verdade? Que os imigrantes ilegais são seres angelicais como os descritos? Que os imigrantes legais tendem à canalhice?
Nada, exceto a crença de Frears de que as coisas se passam assim. Aceitemos essa crença. Mas vamos convir que, num mundo tomado por imagens, e quase sempre falsas, a crença não basta para que acreditemos no que vemos.
A verdade da imagem é, hoje, cada vez mais rara. Produzi-la não é idêntico a imitar algo que parece verdadeiro. Para ficar com um exemplo recente, em "A Inglesa e o Duque", Eric Rohmer chegou a resultados notáveis na representação da época da Revolução Francesa ao reconstituí-la através de quadros. Pode parecer estranho a quem não viu, mas, passados alguns minutos de estranhamento, o espectador já não consegue conceber outra Paris revolucionária que não aquela, e a desprezar as reconstituições que imitam Paris no fim do século 18.
Com a dramaturgia algo semelhante acontece. À força de faltar essa verdade que não vem da imitação, mas da produção de realidade, "Coisas Belas e Sujas", a cada rolo que passa, parece mais um melodrama barato, indigno de Frears, ou de seu passado. Essa é a penosa impressão que fica.
Avaliação:
Coisas Belas e Sujas
Produção: Inglaterra/Somália, 2002
Direção: Stephen Frears
Com: Chiwetel Ejiofor, Audrey Tautou
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco
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