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23/12/2003
-
06h18
SERGIO SALVIA COELHO
Crítico da Folha de S.Paulo
Lá vem o Oficina abrindo o verão, cumprindo a tradição dos últimos anos. O romance-rio "Os Sertões", depois de irrigar a árida Terra e batizar o Homem brasileiro, narra agora a formação de Antonio Maciel, o Conselheiro, desde quando era mera peça de engrenagem de luta entre famílias até sua sombra crescer e inundar a história.
Chegamos ao indivíduo, portanto. Mas nesse triste país em busca de heróis, seria grave cair na hagiografia, na mistificação patriótica de um ser isolado e sobre-humano. Foi por isso que Euclydes da Cunha, para registrar para além de sua época o sentido profundo do que foi Canudos, precisou primeiro falar da terra e do homem, dos quais Conselheiro é consequência.
Não um super-homem, mas uma mutação que supera o meio hostil, um trans-homem, conceito que, garante o diretor José Celso, traduz melhor a visão de Nietzsche.
Dois planos
O espetáculo do Oficina, além de manter a estrutura de Euclydes, situa sempre o Conselheiro entre dois planos: acima, no "Paraíso", Cristo surge para mapear a sina, oferecendo sua imitação em busca de sentido além do histórico; no plano cotidiano, misturado à platéia, cada indivíduo do elenco se expõe em ritual de transformação.
Entre o iniciático e o antropológico, "Os Sertões" vai assim se impondo essencial como um Mahabaratha nosso de cada dia. Os que vêm em busca de teatro, e é justo que o exijam em meio a essa ópera-samba melodrama de circo, poderão reclamar que beira a auto-indulgência haver mais de seis horas de espetáculo.
Mas como canalizar essa criação coletiva, que brota em torno do "sourcier" José Celso/Conselheiro, quando cada um dos quase cem em cena veste cada frase, cada tapera da favela cenografada, como se fosse um parangolé? Como chamar de monótono o canto em uníssono, se ele é musicado pela nata da vanguarda paulista?
Se fosse o caso de transformar esses corpos-árvores em carpintaria teatral, talvez coubesse cortar a longa digressão sobre a Abolição, por exemplo. Mas não hoje, quando as terras do barão de Jaceguai, doadas a sua escrava, estão ameaçadas de serem retomadas pelos shopping centers, e que o cavalo dessa escrava é a grande Denise Assunção.
Exército utópico
Da mesma forma, parece algo pedante se evocar Nietzsche e a guerra de Bush para falar de Canudos se isso não estivesse sendo endossado apaixonadamente pelo Afeganistão e pela Alemanha, que já começa a se unir às tropas, no campo inverso em que estava há cem anos.
Formado por teimosia ao longo dos anos, juntando suas águas, que atraem irresistivelmente pela sua estética, sua ética, sua política, o exército utópico do Oficina está pronto para a luta. Ano que vem, o Sertão vai virar mar.
Avaliação:
Os Sertões - O Homem 2 - Da Revolta ao Trans-Homem
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: grupo Uzyna Uzona
Quando: hoje, às 14h30
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 3106-2818)
Quanto: R$ 10
Leia mais
Erramos: "Os Sertões" realiza a unificação de águas
"Os Sertões" realiza a unificação de águas
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Crítico da Folha de S.Paulo
Lá vem o Oficina abrindo o verão, cumprindo a tradição dos últimos anos. O romance-rio "Os Sertões", depois de irrigar a árida Terra e batizar o Homem brasileiro, narra agora a formação de Antonio Maciel, o Conselheiro, desde quando era mera peça de engrenagem de luta entre famílias até sua sombra crescer e inundar a história.
Chegamos ao indivíduo, portanto. Mas nesse triste país em busca de heróis, seria grave cair na hagiografia, na mistificação patriótica de um ser isolado e sobre-humano. Foi por isso que Euclydes da Cunha, para registrar para além de sua época o sentido profundo do que foi Canudos, precisou primeiro falar da terra e do homem, dos quais Conselheiro é consequência.
Não um super-homem, mas uma mutação que supera o meio hostil, um trans-homem, conceito que, garante o diretor José Celso, traduz melhor a visão de Nietzsche.
Dois planos
O espetáculo do Oficina, além de manter a estrutura de Euclydes, situa sempre o Conselheiro entre dois planos: acima, no "Paraíso", Cristo surge para mapear a sina, oferecendo sua imitação em busca de sentido além do histórico; no plano cotidiano, misturado à platéia, cada indivíduo do elenco se expõe em ritual de transformação.
Entre o iniciático e o antropológico, "Os Sertões" vai assim se impondo essencial como um Mahabaratha nosso de cada dia. Os que vêm em busca de teatro, e é justo que o exijam em meio a essa ópera-samba melodrama de circo, poderão reclamar que beira a auto-indulgência haver mais de seis horas de espetáculo.
Mas como canalizar essa criação coletiva, que brota em torno do "sourcier" José Celso/Conselheiro, quando cada um dos quase cem em cena veste cada frase, cada tapera da favela cenografada, como se fosse um parangolé? Como chamar de monótono o canto em uníssono, se ele é musicado pela nata da vanguarda paulista?
Se fosse o caso de transformar esses corpos-árvores em carpintaria teatral, talvez coubesse cortar a longa digressão sobre a Abolição, por exemplo. Mas não hoje, quando as terras do barão de Jaceguai, doadas a sua escrava, estão ameaçadas de serem retomadas pelos shopping centers, e que o cavalo dessa escrava é a grande Denise Assunção.
Exército utópico
Da mesma forma, parece algo pedante se evocar Nietzsche e a guerra de Bush para falar de Canudos se isso não estivesse sendo endossado apaixonadamente pelo Afeganistão e pela Alemanha, que já começa a se unir às tropas, no campo inverso em que estava há cem anos.
Formado por teimosia ao longo dos anos, juntando suas águas, que atraem irresistivelmente pela sua estética, sua ética, sua política, o exército utópico do Oficina está pronto para a luta. Ano que vem, o Sertão vai virar mar.
Avaliação:
Os Sertões - O Homem 2 - Da Revolta ao Trans-Homem
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: grupo Uzyna Uzona
Quando: hoje, às 14h30
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 3106-2818)
Quanto: R$ 10
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