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27/12/2003 - 03h38

Escritor argentino fala dos 20 anos da redemocratização de seu país

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SYLVIA COLOMBO
da Folha de S.Paulo

Macedonio Fernandez, Roberto Arlt, Jorge Luiz Borges de um lado; o conto, o ensaio, a maneira como se constrói a tradição literária de outro. Em "Formas Breves", o escritor argentino Ricardo Piglia, 62, convoca os primeiros --escritores do primeiro time das letras argentinas-- para refletir sobre o resto.

Piglia compõe hoje com Juan José Saer a linha de frente dos escritores argentinos vivos. Entre outros, é autor de "Plata Quemada" (97), livro em que se baseou filme dirigido por Marcelo Pyñeiro, sobre um famoso assalto a um carro-forte em Buenos Aires nos anos 60.

Em "Formas Breves" --nas livrarias em 8 de janeiro--, predominam imagens e relatos, dos quais Piglia extrai temas para reflexão literária. É o caso da passagem em que o autor analisa a obra de Roberto Arlt a partir da imagem de seu caixão, que teve de ser retirado de sua casa pela janela, na ocasião de sua morte, porque o escritor era muito grande.

Ou ainda quando discorre sobre a genialidade dos contos de Borges a partir de um sonho que este teve, aos 80 anos, no qual via um homem sem rosto que lhe oferecia a memória de Shakespeare.

Leia trechos da entrevista que o escritor concedeu à Folha.

Folha - A Argentina comemora os 20 anos da redemocratização. Acha que hoje é um país politicamente mais maduro que em 1983?
Ricardo Piglia -
Como você sabe, a maturidade não é uma boa metáfora para definir a cultura argentina. Mas nos últimos tempos algo mudou. São visíveis e discutidas publicamente questões que no passado só expressavam as posições e denúncias de pequenos grupos. A corrupção no Senado, a participação da polícia em delitos, a vergonha consentida das leis de Obediência Devida e de Ponto Final [que beneficiavam oficiais envolvidos com a ditadura], a impossibilidade de pagar a dívida etc.

A informação política tomou sentido novo, forma parte das relações de força e circula mais abertamente. Isso não impede, porém, que as intrigas secretas sigam definindo as linhas básicas da política argentina. Mas nossa literatura já disse tudo sobre isso.

Folha - Você diz que o tema da perda da mulher amada está nas raízes tanto do tango como da literatura argentina. O "Aleph" é uma metáfora dessa perda?
Piglia -
A perda da mulher está na origem das letras de tango e produz um tipo de olhar novo da realidade, uma espécie de olhar filosófico. O homem que perdeu a mulher já não vê o mundo do mesmo modo, se converte em um misantropo, vê tudo com rancor e lucidez.

A perda da mulher é a condição dessa consciência. E isso desde o princípio é a história de "O Aleph", de Borges. A perda de Beatriz Viterbo se transmuta na experiência do "aleph". O universo se percebe pela primeira vez como é. Há muitas cenas parecidas nos tangos. Eu costumo dizer brincando que o tango "Cambalache", de Discepolo, é o "aleph" dos pobres. A enumeração caótica da letra da música produz, como em "O Aleph", uma imagem única que concentra o sentido do mundo.

Folha - Em que Borges foi realmente inovador em seus contos?
Piglia -
O que chama a atenção nos contos de Borges é a capacidade de concentrar em poucas páginas uma história múltipla. Seus textos sintetizam mundos muito complexos. Borges pratica a arte da microscopia. O "aleph", o ponto mágico onde conflui todo o universo, é uma dessas extraordinárias máquinas mínimas.

Borges tinha o olhar de um míope, em sua obra se vêem linhas quase invisíveis que, ao nos aproximarmos, ganham sentidos múltiplos. Há uma foto onde se vê Borges lendo, ele tem o livro colado à sua cara. Esse movimento é o que produz a leitura de seus contos. À medida em que nos aproximamos, tudo parece crescer, os signos mudam, o texto se transforma. A literatura, diria Borges, é sempre uma questão de escala.

Folha - O texto de Borges sobre o escritor que tem a mente invadida pela memória de Shakespeare é uma metáfora da memória literária. O que é esta memória para você?
Piglia -
A memória é uma metáfora da sabedoria. É antiga e anterior à escrita que, como se disse, está feita para que se possa esquecer. Borges cruza essas duas questões, a memória interminável e o arquivo desordenado das leituras.

Esse relato, que é o último que escreveu, parece uma réplica de "Pierre Menard, autor de Quixote", que foi seu primeiro conto. Ao fim de sua vida, depois de 50 anos escrevendo ficção, Borges volta a narrar essa história, passamos de Cervantes a Shakespeare, mas a questão é a mesma.

Folha - Você diz que a crítica é a forma moderna da autobiografia, ao contrário do que acontece em "Dom Quixote". Por quê?
Piglia -
Dom Quixote crê na ficção. Com Madame Bovary acontecia o mesmo. Crêem que a ficção é melhor e inclusive mais real que a realidade, e aí talvez tenham razão.

A crítica, ao menos como eu a entendo, tende a trabalhar a crença noutro sentido. Ela se pergunta como se constrói a crença, o que significa fazer crer, como funciona uma ficção. Questões que, é claro, têm sentido político. Nem tudo é ficção, como se costuma dizer. A ficção é um uso muito particular da linguagem, cuja lógica é difícil de definir. Mas não é possível confundir a ficção com a verdade.

A literatura é o laboratório da ficção, onde se experimenta com as formas de crer e com a construção da verdade.

A crítica é um discurso verdadeiro? Sobre o quê? A essa reflexão pessoal me refiro quando digo que é a forma atual da autobiografia.

Folha - Por que o fato de escrever como um estrangeiro dá a Roberto Arlt a imagem de "o mais argentino dos escritores"?
Piglia -
O sobrenome Arlt é um símbolo de seu estilo. Difícil de pronunciar, inesquecível, feito de consoantes que soam como pedras em uma lata, parece estrangeiro em qualquer língua. Sua estratégia com os nomes de personagens é um bom modo de entender seu estilo. Parecem marcas de um idioma perdido, são belíssimos e sugestivos. Astier, Erdosian, Balder, Barsut, Ergueta. Não sei como soam em português, mas em espanhol parecem fórmulas mágicas, remetem a uma língua perturbada, uma fronteira ilegal e secreta.

Folha - Borges disse que seria melhor que o "Facundo" [de Sarmiento] fosse a obra literária eleita para identificar os argentinos, e não "Martín Fierro" [de José Hernandez]. Você concorda?
Piglia -
Diz Borges: "Como pode ser que nosso poema nacional seja a história de um desertor do Exército?". Alguns podem considerar isso uma das virtudes de Fierro, mas no mundo ideológico onde Borges se movia nos anos 50, essa forma de ler o poema era perturbadora. Por outro lado, Borges sabia muito bem que a Argentina se constituiu a partir do "Facundo" e que nesse livro não se funda apenas a tradição central da literatura argentina, mas também se constrói imaginariamente um modelo de Estado, que é o tipo de Estado que prevaleceu na Argentina.

FORMAS BREVES
Autor: Ricardo Piglia
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 27 (120 págs.)
 

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