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03/01/2004 - 04h41

Obra realimenta admiradores de Proust com a presença do autor

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MARCELO COELHO
colunista da Folha

Escritos quando Proust (1871-1922) tinha 20, no máximo 23 anos, os textos recolhidos em "Os Prazeres e os Dias" dificilmente fariam prever que seu autor seria um dos maiores gênios literários do século 20 ou de qualquer outro século. Mas encontramos já nessas páginas juvenis alguns dos principais temas de "Em Busca do Tempo Perdido".

O famoso beijo de boa-noite, que o menino doentio, sozinho no quarto, ardentemente espera que sua mãe venha lhe dar, aparece bem no início de "Os Prazeres e os Dias". Na dedicatória do livro, Proust menciona a arca de Noé: compara uma convalescença ao bom tempo que surge depois do dilúvio --e lamenta que, com a saúde recuperada, sua mãe não lhe dedicasse mais os mesmos carinhos.

Observe-se que só essa dedicatória, em que o autor se dirige a um amigo morto, Willie Heath, tem quase quatro páginas --prenúncio da conhecida expansividade da escrita proustiana, e de um gosto pela homenagem que em Proust chegava às raias da subserviência.

A maioria dos textos de "Os Prazeres e os Dias" é bem curta, entretanto. Há um pouco de tudo: contos, reflexões espirituosas, duas imitações brilhantes do "Bouvard e Pécuchet" de Flaubert, e mesmo alguns poemas em que, no estilo de "Os Faróis" de Baudelaire, Proust descreve em versos a obra de pintores e músicos de sua especial admiração. Chopin, por exemplo: "mar de soluços, lágrimas, suspiros/ que um vôo de ágeis borboletas atravessa", na tradução perita de Carlos Felipe Moisés.

O teor alambicado e precioso desses versos não nos faz esquecer, contudo, o quanto a arte de Proust é também, o tempo todo, grande crítica de arte; e as belas descrições da música de Chopin em alguns trechos de "Em Busca do Tempo Perdido" já se fazem intuir quando, nesse poema de juventude, o compositor polonês é chamado de "príncipe da aflição".

É também reveladora da particular personalidade estética de Proust a escolha das epígrafes, que pululam neste livro, e são muito bonitas. Esta, de Emerson, poderia servir quase que como um programa da estética proustiana: "O modo de vida do poeta deveria ser tão simples que as influências mais banais o alegrassem, sua felicidade deveria poder ser o fruto de um raio de sol, o ar deveria bastar para inspirá-lo, e água, para inebriá-lo".

A citação de Emerson abre um capítulo de devaneios e anotações que os fãs de "Em Busca do Tempo Perdido" haverão de ler com emoção; é como se víssemos, ainda dispersos, os materiais que iriam compor aquele "édifice immense du souvenir", o edifício imenso da lembrança, que todos, de certo modo, habitamos graças a Proust.

Num só parágrafo, por exemplo, encontram-se encapsulados um trecho de crítica de arte, um esboço do otimismo fundamental de Proust e a obsessão funesta de Bergotte, um dos heróis de seu romance: "Temos certas recordações que são como a pintura holandesa de nossa memória, quadros de gênero nos quais os personagens têm frequentemente uma condição medíocre, retratadas em um momento bem simples de sua existência, sem eventos solenes, às vezes mesmo sem evento algum, numa moldura, que nada tem de extraordinário ou de grande. A naturalidade das personagens e a inocência da cena constituem a atração do quadro, a distância põe entre ela e nós uma luminosidade suave que a banha em beleza".

Esse gosto pelo pastoral e pelo simples haveria de contrastar, sem dúvida, com a mania de mundanismo e de grandeza que ocupava o jovem Proust a maior parte do tempo --seu "tempo perdido"-- e durante boas páginas de "Os Prazeres e os Dias". O título do livro faz referência irônica e autocrítica à clássica celebração da vida rústica de Hesíodo, em "Os Trabalhos e os Dias". Mais um motivo, aliás, para que na época de seu lançamento o primeiro livro de Proust passasse por ser apenas um fricote literário de moço grã-fino. Mesmo hoje, sabendo em quem Proust se tornou, é difícil de engolir um título como o do primeiro conto, "A Morte de Baldassare Silvande, Visconde de Sylvanie" --sonoridade preciosa do nome do personagem lembra o simbolismo já meio borocochô de Albert Samain (1858-1900).

Nesse conto, encontramos também uma característica marcante do estilo proustiano, a tripla adjetivação. Um menino pequeno gosta de brincar com seu tio; amava em especial os seus joelhos --"inacessíveis como uma cidadela, divertidos como cavalinhos de madeira e mais invioláveis do que um templo". Estamos diante de um ritmo psicológico, o dos três adjetivos que se compõem como um mosaico, numa aproximação surpreendente (templo/ cavalinhos de madeira), mais do que diante de uma imposição estilística muito precisa, ditada pelas necessidades de uma descrição real do objeto. Falta muito para chegarmos aos milagres de adjetivação do Proust da maturidade: afinal, do "inacessível como uma cidadela" para o "inviolável como um templo", não há tanta diferença assim...

É uma distorção de leitura, sem dúvida, comparar "Em Busca do Tempo Perdido" com "Os Prazeres e os Dias". Mas como agir diferentemente? Seria sem dúvida pouco recomendável ler este livro, só porque é mais curto e apareceu agora, antes de tomar conhecimento com a obra-prima do autor. O papel de "Os Prazeres e os Dias" é, assim, o de esclarecer os admiradores de Proust, realimentá-los com a presença do autor, com sua voz, não tanto com seu estilo; é um livro para os "proustólogos" --mas não há mal nenhum em fazer parte desse grupo.

Avaliação:
 

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